Um clique e você encomenda um conjunto de roupa de cama que chega em 3 dias na porta da sua casa. Um clique e o jantar da família é providenciado. Um clique e sua música preferida pode ser tocada em repeat. Um clique e você termina, em uma madrugada, a nova temporada de sua série favorita.
Estamos na era dos cliques e eles se tornaram vitais quando o isolamento social foi a nossa maior e melhor alternativa para nos mantermos vivos em meio a um ataque de um vírus mortal que, mesmo diante de tantos avanços da ciência, conseguiu se alastrar pelo o mundo inteiro. Foi também um clique que nos fez cientes da importância da pandemia, com seus cuidados necessários. Muitos outros deles nos mantiveram alimentados, entretidos e atualizados sobre nossos familiares, parentes e colegas de trabalho. Na verdade, para várias pessoas, o clique garantiu o salário e o emprego.
Não tem como fugir. Os cliques chegaram para ficar e acho que precisamos dar sempre boas vindas a todas as possibilidades tecnológicas que facilitam nossa vida. Mas, entendo também que se não houver uma reflexão séria sobre as estruturas mentais e emocionais que essas novas práticas criam em nós, corremos o risco de cair na jaula dos ímpetos e impulsos para que tudo esteja no seu lugar e na sua hora de agrado. Sempre. E sem interrupções.
Como uma pessoa que nasceu antes dessa inundação de cliques e que veio de uma família pobre onde todas as novidades tecnológicas demoraram muito para entrar na rotina, eu tenho a oportunidade de fazer comparações e lembrar do meu ritmo e tempo, antes do imediatismo dos serviços e compras online. Com pouco esforço, eu sei lembrar de como era pesquisar algo nos anúncios das folhas amarelas do índice telefônico, escolher com paciência as opções, ligar uma por uma para tirar as dúvidas e decidir o que queria de acordo com minha capacidade financeira, preferência e circunstância.
Diante disso, ao me ver encarcerada por sentimentos de agonia e frustração quando o clique não funciona, sempre faço o exercício de reorganizar minha experiência para não ser engolida por essas sensações. Vou trazer um exemplo bem recente e que me ajudou a escrever este texto.
Fiz uma compra online simples, onde escolhi rapidamente o produto que queria. Era uma luminária para o quarto do meu filho que ainda tem dificuldade de dormir no escuro completo. Escolhi o modelo, baseado em algumas opções, boas avaliações e a promoção mais evidente. Em dois cliques eu já tinha colocado o produto no carrinho e pago com uma transação financeira do banco digital.
Os dias seguiram e acompanhei o pacote através de notificações do aplicativo de compras. Eu sabia quando o produto foi enviado, chegou na minha cidade e quando saiu para ser entregue. De repente, recebo um aviso que o produto havia sido recebido, solicitando minha avaliação sobre ele. Ligo para a portaria do meu prédio e me dizem que nada em meu nome havia chegado. Fico intrigada porque a notificação confirma a entrega da encomenda.
Decido falar direto com o porteiro e enfatizo que o produto tinha rastreamento e havia a informação que ele já estava no endereço de destino, que estava completamente correto. O funcionário disse que já tinha olhado tudo e que não havia nada ali e que ele não podia fazer milagre. Essa fala dele me jogou em um espiral de frustração e saí bufando do local, dizendo que eles precisavam saber onde estava a encomenda. Vou ao site de compras, busco a transportadora e tenho acesso a detalhes do rastreio, porém, não aparece o nome de quem recebeu a encomenda, algo que poderia ajudar a descobrir se ela chegou no lugar certo.
Mando mensagem para todos os contatos da empresa, do formulário oficial, ao e-mail da matriz em São Paulo e da filial em Salvador. Acho números de telefone e ligo para todos - que não me atendam ou não existem (e já eram quase dez da noite, né?). Cansada pelos meus próprios ímpetos e incapaz de comer meu jantar, resolvo parar, respirar e lembrar a mim mesma o que estava acontecendo naquele momento. Fiz um exercício que uso muito para lidar com minha ansiedade: olhar cada cenário negativo que estou inventando na cabeça e observar como posso resolver cada um deles.
Em menos de quinze minutos me dei conta que a situação não era tão difícil assim. O produto era rastreado, eu falei com a empresa e provavelmente receberia alguma resposta no dia seguinte. Além disso, caso a situação não se resolvesse eu poderia cancelar a compra e receber meu dinheiro de volta. Não queria ter que fazer isso, mas pelo menos eu não sairia no prejuízo e poderia encomendar o mesmo tipo de luminária, com o mesmo preço, de outra loja. Resumidamente: o mundo não estava acabando!
Com a cabeça de volta ao lugar, fiquei pensando o que me fez cair nesse espiral. Os cliques facilitaram tanto a minha vida e, ainda assim, quando uma pequena coisa não funcionou, eu quase enlouqueci. Nessa hora resolvi rememorar o mundo antes dos cliques e como fazer certas coisas levava muito mais tempo, com muitos obstáculos e ainda assim conseguia atravessar cada um deles.
Especialmente um me chamou a atenção. Eu pensei: “Eu ligava o rádio e, às vezes, eu pegava uma música que amava bem no final. Eu ficava frustrada, mas, ainda tinha paciência para esperar um momento em que coincidisse ligar o aparelho e pegar a música no começo. Sendo que nessa época não tinha como eu comprar ou acessar a canção. O jeito era esperar ela tocar. Ou seja, se eu sei o que é não conseguir ouvir uma música que eu gostava, porque não consigo lidar com uma frustração que está muito mais sob meu controle?”
E esse exemplo pode ser jogado para muitas outras situações. O cursinho que acontecia bem no horário do meu programa favorito de TV e que eu, sem ter a tecnologia do gravador de tela, tinha que contentar em saber mais perguntando a amigos e amigas que gostavam da mesma atração. O filme que estava super curiosa para ver e que a grana curta impedia de ir ao cinema. O jeito era aguardar chegar na locadora do bairro e dedicar uma tarde do meu dia para mergulhar naquela história - que, às vezes, era péssima, mas o desejo era tão grande que eu suportava ir até o final. Agora, eu demoro quase meia hora para decidir um filme da Netflix, ou Amazon e, se não gosto dos primeiros quinze minutos, eu paro e não assisto mesmo. Ano passado fiz isso com quase dez filmes diferentes!
Sinto falta de ser uma pessoa que sabe lidar melhor com o chato, o desagradável e, especialmente, o imprevisível. Quero deixar claro também que, quando falo isso, não estou querendo abolir as evoluções tecnológicas e os benefícios dos cliques na nossa vida. Eu, particularmente, considero uma questão bem elitista os movimentos de pessoas que não aceitam usar mais celulares ou somente versões analógicas que apenas ligam e mandam mensagens. Grandes privilegiados podem se dar ao luxo de viver suas rotinas sem precisar dessas tecnologias. Se um pobre brasileiro pode ter acesso a um celular que lhe permite fazer uma transação de pix para pagar uma conta importante em segundos do que ficar 1 hora em uma fila de caixa eletrônico, muitas vezes, gastando transporte para isso, que assim seja! Que essa pessoa colha todos os benefícios de tempo e economia que essa tecnologia lhe oferece.
Ah, preciso contar como termina minha história. Depois de me dar conta que nada podia ser feito, sentei, respirei, lembrei da situação do rádio e fiquei falando comigo mesma, tal como uma mantra: “Você já tolerou pegar uma música que amava no rádio apenas no final. Você já tolerou pegar uma música que amava no rádio apenas no final. Você já tolerou pegar uma música que amava no rádio apenas no final…”. Fui voltando a mim mesma, ao ponto de conseguir sentir fome e seguir preparando meu jantar. Em menos de cinco minutos a portaria do prédio me liga e avisa que um motoboy chegou com minha encomenda. Ele recebeu uma mensagem da empresa, por conta do meu email, e percebeu que tinha deixado minha entrega no endereço errado. Ele foi até meu prédio, pediu desculpas pelo ocorrido e eu recebi minha encomenda intacta. Problema resolvido! Melhor ainda, meu problema foi resolvido no momento em que eu entendi que podia viver com aquela frustração.
Enfim, as soluções rápidas chegaram para ficar graças aos inúmeros caminhos que os cliques nos entregaram. Que tenhamos sabedoria e discernimento para usar essa tecnologia ao nosso favor, incluindo nossa capacidade de lidar com frustrações e resultados negativos.
FONTE:
Fonte da imagem: https://twitter.com/malvados
Que texto interessante,Karla! Esse comparativo com um passado sem cliques e esse presente clicado foi muito pertinente,e ainda entremeado com um problema particular bem resolvido.