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Foto do escritorEquipe Soteroprosa

Cínico ou Pessimista

Nos anos recentes temos assistido ao acelerado descrédito das nossas instituições representativas e democráticas. A crise política, acentuada pelo desgaste de nossa economia, evidenciou em meio às nossas fragilidades socioeconômicas um discurso recorrente nos mais diversos setores da população brasileira que tem como tônica um pessimismo quanto à nossa capacidade de superação da crise pela via política. Essa descrença aparece como resultado das ações desviantes dos nossos representantes e suscita uma ideia de incapacidade de se pensar em soluções dentro de sua estrutura considerada decadente, devido aos mecanismos institucionais tidos como viciados e um sistema parlamentar construído sob a égide da corrupção e favorecimento. Esse discurso pessimista por vezes assume uma retórica cínica que ataca qualquer perspectiva de melhoria pelas vias tradicionais de transformação e ação política.


Contudo, antes de prosseguir, acho justo defender a conduta cínica e fazer uma pequena diferenciação. Nutro uma admiração seletiva, porém sincera pelo cinismo; não enquanto uma conduta de ascetismo adotada pelos filósofos gregos precursores do movimento, mas de sua conduta satírica, que subvertia as normas sociais estabelecidas com uma desobediência provocativa. Confesso até mesmo admirar a conotação pejorativa mais contemporânea do termo, que normalmente associa-se a uma certa desfaçatez dos costumes, ou numa expressão mais completa, evidencia uma “cara de pau” na forma de comportar-se. Em alguns momentos faz-se necessário agir com certa dose de ironia ou desconstruir certos valores com o intuito de avançarmos em alguma direção. Tomo por herança dos cínicos a postura irreverente e arraigada em seu propósito de desconstrução valorativo.


Pensando nessas questões, me vi incomodado ao observar uma prática cada vez mais recorrente de um “cinismo às avessas” que tem circulado de forma discreta e difundida entre nós brasileiros, que não se propõe a uma subversão ou crítica construtiva, mas apenas ao ataque às nossas instituições, especialmente à política. Chamo de “cinismo às avessas” porque tais ataques por vezes apresentam uma face de rejeição à política como um todo, portanto resultam numa perda da dimensão de reflexão propositiva que não necessariamente está contida no cinismo em sua gênese, contudo, pode nos ser útil na acepção aqui tomada por herança.


A crítica às instituições em questão e aos representantes que ocupam seus quadros é um exercício salutar em tempos onde explodem tantos escândalos, o problema é quando essa prática se reduz a um exercício vazio de pessimismo, uma negação da política em toda sua amplitude, onde não enxergamos perspectiva alguma de melhora e tal qual um cão que morde o próprio rabo, nos contentamos em repetidamente repetir os velhos mantras de descrença na política, ou de que não existe caminho de melhoria por essa via.


Esse pessimismo, combinado com a apatia demonstrada por muitos de nós, quanto à capacidade de resolução das contradições internas da sociedade brasileira pelas vias de representação parlamentar contribui para o esvaziamento da resolução do problema. Nesses momentos de pessimismo costumam-se tomar as piores decisões, ou na pior das hipóteses, surgem os supostos “salvadores”, que em seus discursos de combate aos males do presente, dotados de mudanças radicais do cenário posto, agregam muitos setores sociais em torno dessa retórica que busca a transformação fora da política (como se a mesma se reduzisse às câmaras legislativas, Senado, etc.).


Alimentados por tal retórica e apatia, muitos preferem depositar suas esperanças (ou seria desesperança?) nos discursos corporificados em forma de pessoas ou grupos que apontem para um horizonte sem a necessidade da política institucional, vista como corrupta e desmoralizada cotidianamente (não sem motivo) pelas notícias que tem como alvo as ações ilícitas dos nossos representantes. Talvez a nossa negação da política se encaixe no que Sérgio Buarque analisou como sendo uma rejeição ao espaço público para além do âmbito familiar, onde prevalecem práticas privatistas. Nesse ínterim, a negação se transforma em pessimismo.


Imbuído desse incômodo quanto à essa dimensão pessimista do contexto brasileiro, lembrei-me de um conto narrado por Voltaire, Cândido ou o Otimismo, no qual o filósofo munido de seu habitual humor mordaz ilustra os males da ingenuidade e da esperança num mundo onde tudo parece dar errado.


A história conta a trajetória de Cândido, um rapaz ingênuo e bem intencionado que acreditava nas sábias lições do seu professor, o Dr. Pangloss, que embasado por uma certeza metafísica inquebrantável afirmava que “Está demonstrado, que as coisas não podem ser de outro modo: porque tudo sendo feito visando a um fim, tudo está necessariamente ordenado ao melhor fim [...] Tudo é o melhor possível”. Diante de tamanha certeza e solidez argumentativa, como poderia o jovem Cândido desacreditar?


Eis que a história segue e a vida da personagem dá imensas reviravoltas: expulso do castelo em que cresceu por cortejar a sua amada, filha de barões, sequestrado por mercenários húngaros e posto em serviço militar obrigatório, viu seu lar ser destruído, sua amada ser violada e vendida por mercadores inescrupulosos e participou de aventuras que envolveram desde piratas e indígenas do Novo Mundo à inquisidores e patifes da pior espécie. Passou por dolorosas situações de castigo físico, assassinatos e demais barbaridades, tão avessas a um sujeito de natureza tão gentil (aflições também compartilhadas com seu mestre Pangloss, que dividiu destino terrível).


Por mais que a realidade de Cândido fosse o oposto das suas expectativas filosóficas, sua fé no melhor dos mundos não desaparecia, ou quando se aproximava disso via-se renovada por algum evento ou argumento estapafúrdio elencados por seu mestre. Voltaire com uma ironia cínica leve e divertida nos faz acompanhar a trajetória desafortunada desse jovem que no melhor espírito brasileiro, “não desiste nunca”, um tolo otimista que vê o melhor dos mundos onde nada funciona ou dá certo. Em resumo: um tolo (pois a ingenuidade não justificaria a idiotice contumaz). A imaginação irônica de Voltaire concebeu uma saga divertidamente pitoresca com elementos dignos de filmes de quinta categoria, contudo o filósofo francês aplaudiria aos risos a criatividade brasileira para o absurdo.


No caso do cinismo às avessas brasileiro parece que vivemos a situação oposta do Cândido na forma de nos posicionarmos diante dos fatos: acreditamos viver no pior dos mundos, onde nada funciona e tudo conspira para o fracasso das nossas instituições. Em nossa trajetória não temos os piratas ou mercenários húngaros, mas temos situações tão estapafúrdias quanto: Presidente que negocia acordos escusos com empresários com nome de dupla sertaneja, cujo patrimônio da empresa cresceu absurdamente com subsídios de dinheiro público (quem precisa de livre concorrência?), ou deputados e assessores com malas cheias de dinheiro, ou dólares na cueca, ou sítios e apartamentos como “mimos” de empreiteiras, ou ministros da Suprema Corte do país com reputação e honestidade duvidosas...


Não é de se espantar a nossa desilusão e pessimismo quanto à capacidade de resposta das instituições dos três poderes em solucionar a crise que se abate sobre o país. De um lado o otimismo injustificado ao estilo de Cândido nos cegaria para a possibilidade de enxergar e atuar de forma incisiva sobre os problemas de nossa sociedade. Em contrapartida, o pessimismo catastrófico e descrença na política só nos distancia das soluções dos mesmos problemas e no máximo nos oferece falsas soluções que podem tangenciar por caminhos arriscados.


Quando as resoluções dos problemas de natureza política aparecem com vernizes apolíticos a tendência é a sociedade caminhar para os extremos, nesse contexto não é de surpreender o aparecimento de discursos enviesados pela negação, ódio ou desilusão com tudo que não represente uma ruptura radical com o que está posto. Resgatar a política brasileira do limbo não é tarefa fácil, contudo, tarefas dessa natureza nunca o são. O que não podemos é adotar a postura do protagonista de Voltaire, pois não está tudo o melhor possível, todavia, não há a impossibilidade de mudar o que existe.


Em um último pensamento, me pergunto se talvez a postura cínica propositiva (adaptação cretina que tomei a liberdade de fazer) nos auxiliaria nessa missão. Ao menos do ponto de vista da reflexão política, trazendo-nos uma crítica desobediente que subverte o que consideramos valores caducos de nossas instituições, modernizando-as por meio de reformas pensadas a partir de modelos que deram certo em outros lugares do mundo, considerando as especificidades nacionais, mas sem cometermos o erro de descartar o todo e acharmos que nada do que possuímos presta. Já diria Cândido, ao final de toda a sua desventura, que apesar de todas as desgraças que se abateram e do mundo caminhar (Pangloss discordaria) de forma caótica de mal a pior, “é preciso cultivar o nosso jardim”.

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