"A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar?
Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio.
Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só.
Vem a tristeza da solidão...
O que mais você deseja é não estar em solidão..."
" (Rubem Alves. A solidão amiga).
Minha coluna de hoje será uma breve reflexão sobre a vida, tempo e solidão na sociedade contemporânea.
A velocidade das coisas, atualmente, tem impacto significativo em nosso tempo. Não pensamos mais em conduzi-lo, mas deixamos que o tempo nos conduza. Sim, porque ao sermos cada vez mais envolvidos pela dinâmica insana da contemporaneidade, em um processo de aceleração tecnológica, na instantaneidade das informações, super conectados cada vez mais à internet, a globalização hiper comunicativa, somos envolvidos em uma complexa teia de projetos que não formulamos. Sim, somos cada vez mais passivos e desconectados com nós mesmos! Aceitamos projetos de vida artificiais, conduzidos por padrões sociais cada vez globalizados, e não encontramos mais tempo para dar atenção às nossas intuições, ao nosso mundo interior.
Essa passividade quanto aos segundos, minutos, horas, dias, meses e anos deixa pouco espaço para a ociosidade. Atualmente, o impacto da tecnologia tem uma consequência no trabalho e nas horas de descanso. O capitalismo avançado mina cada vez mais o tempo das pessoas. O tempo fora do trabalho é utilizado também na lógica do consumo, hoje com internet, a tv, smartfones e todos os meios tecnológicos possíveis. Tempo é dinheiro!
E, se antigamente o descanso era o tempo reservado a contemplação, na busca do arché (principio ou fundamento absoluto) , do contato com Deus para os cristãos, ou, para outros ainda, pensar sobre a existência, hoje esse tempo é consumido por uma série de banalidades impostas, importadas.
Se o trabalho era visto, antigamente, como uma punição a escravos e pobres que não podiam pagar os impostos e dar conta das necessidades vitais, a partir de fins da Idade Média ela vista como obrigação secular, e, ao mesmo tempo, uma ética praticante para a graça divina. O que vemos hoje é uma apologia ao labor. O capitalismo teve a capacidade de intensificar essa visão, desenvolvida no berço do protestantismo.
Vivemos a desvalorização da contemplação, da ociosidade, mediante a uma visão equivocada de que para ser feliz é necessário produzir cada vez mais , e consumir ad infinitum. A própria ideia de felicidade é associada a uma visão utilitária, a algo externamente artificial e convencionalmente massificada. Além disso, associamos infelicidade com momentos de solidão.
A consciência de estar a sós foi modificada. Não aguentamos mais os momentos de solidão porque nascemos e somos criados na multidão. Os instantes de tranquilidade nos parecem torturantes! Precisamos estar sempre com os outros! Precisamos ir ao shopping, escutar algum tipo de som, usar as mídias sociais, procurar pessoas para nos comunicarmos através do uso de celulares. Enfim, estamos cada vez mais distantes de nós mesmos. É como ter medo da própria presença. Medo do silêncio!
“Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga. Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga”? (Rubem Alves)[1]
Com isso, não dispomos mais de tempo para ler um livro, fazer uma autorreflexão do nosso dia, escrevermos no diário autobiográfico, estar em contato direto com a natureza, praticar uma meditação, mantra, orações, em momentos de espiritualidade. Até a palavra religião foi desvirtualizada, pois religião é religare, ou seja, a ligação ou união com o sagrado.
A vida contemporânea deságua na nossa incapacidade de lidarmos com a finitude. Sim, porque a tragédia da existência, a morte, é encarada como um tabu. Pensar sobre a morte é visto como algo abominável ou até macabro. É o vampiro fugindo da cruz e do alho!
A valorização da vida a qualquer custo, desde que ela me dê um prazer imediato, sem refletir exatamente que ela é passageira, não tem nos conduzido sobre uma questão fundamental: o que fazer com o tempo de vida que nos resta?
O descompasso entre deixar a vida me levar e ter consciência de como posso levar conduzi-la da melhor forma possível, já que ela é passageira, tem tornado as pessoas reduzidas à simples estímulos sensoriais físico biológicos - de dor e prazer. Ao nos desobrigarmos de conduzir a nossa vida conscientemente, para além do prazer, do imediatismo fabricado, e de uma felicidade manufaturada, de uma apologia do ter e do consumir as coisas, matamos a nossa capacidade de influir em uma dimensão mais mística e, ao mesmo tempo, transcendente da vida. A solidão, como parte da condição humana, tornou-se uma rival.
[1] RUBEM, Alves. A solidão Amiga. In: Palavras para Desatar Nós. Campinas: Papirus, 2011, pág.114-115.