Todo mundo, ou quase todo mundo, sente saudades da infância ou adolescência. As recordações sempre envolvem alguma traquinagem ou brincadeiras com primos na casa da avó. O nosso passado, nesse sentido, é sempre louvável. Aliás, o passado é lírico, envolto em saudáveis lembranças. Lindos poemas evocam o tempo que passou, recordações nos arrebatam, enfim, o pretérito é perfeito.
Vou abordar esse assunto a partir de uma temática sempre recorrente quando se engloba o passado: o cenário cultural de “antigamente”. As festas do padroeiro, o São João, o carnaval, as músicas... Nada será como antes no imaginário que nos remete “àqueles tempos”.
Vamos falar de música. O panorama atual não é nem um pouco promissor, já que muitos artistas que emplacam “grandes sucessos” rapidamente estão no limbo. E então os flashbacks nos assaltam e cantarolamos canções de outrora e isso é geral. Jovens de 18, 20 anos estão sempre tocando no violão sucessos da Legião Urbana, por exemplo. Isso configura nostalgia – muitas vezes utilizado no senso comum para dar significado a uma espécie de memória não vivida que nos acomete e torna lúdica uma época onde nem havíamos nascido. Isso talvez explique um reconhecimento de que o que se compunha, publicava, e experimentava “naqueles tempos” se mantenha firme e forte.Mas há um porém. Se hoje uma canção antiga tem seu valor, qual era a concepção sobre ela assim que foi lançada? Aquele presente era mesmo tão magnifico artisticamente? Vamos à exemplos: Goli Guerreiro no seu livro “A trama dos tambores” explanou sobre o cenário da música baiana carnavalesca que veio a se chamar, de forma pejorativa, de Axé Music. Os ouvintes desse ritmo eram, também pejorativamente, chamados de “brau” – uma referência à palavra “brown” (marrom em inglês) o que sugere que era música de e para negros, ou seja, nada generalizado como algo de bom gosto. Uma peça de teatro na época – “Los Catedráticos”- ironizava as letras das canções, realizando sátiras que faziam o público cair na gargalhada. O grupo É o Tchan era constantemente criticado por colocar dançarinas no palco sendo acusados de objetificar o corpo feminino, além de serem questionados pela qualidade duvidosa do conteúdo musical. E tantos outros casos. Atualmente, algumas músicas que eram associadas a um mau gosto terrível viraram clássicos, comparados à safra atual. E o passado então ganha ares saudosistas em contraste com o horror de um “presente titanic” que só afunda. E quando o assunto é pagode... Já há até reconhecimento do É o Tchan como um “conjunto importante” que sempre flertou com o samba-de-roda e, emparelhado a grupos surgidos há poucos anos, pode ser considerado “cult”.
Com as festas não é tão diferente assim. O famoso folclorista Luís da Câmara Cascudo lastimou transformações que estariam ocorrendo no carnaval de Natal. Isso entre os anos 1920 e 1940!! Reclamou de manifestações que estariam desaparecendo, que era um carnaval “pra turista ver” e pedia para “reavivar nosso carnaval”. Se um idoso “mete o pau” em um festejo que se desenrola nos dias de hoje, recordando que há 50 anos aquela festa era o máximo, um Câmara Cascudo da vida já acharia esse festejo há 50 anos um verdadeiro desastre. Até posso me encaixar nessa discussão. Posso reiterar que curtia muito mais as festas no passado que nesse tempo presente. Em 15, 20 anos o cenário social muda. E sentimos isso. Mas quem tem 20 anos hoje aproveita para no futuro lamentar mudanças. Normal. Parece mesmo que tudo tem seu tempo. E temos nosso próprio tempo.
Maria Laura Cavalcanti observa em seus estudos a descaracterização das festividades com o passar dos anos, segundo depoimentos que recolhe. Ela nota que sempre há uma autenticidade em dado período e com o passar dos anos se apaga. Segundo Cavalcanti, há uma “concepção romântica” nas observações sobre o passado. E a modernidade sempre surge como uma ameaça. Para Regina Abreu o passado é sempre reavaliado para novos fins. “Nesse processo, os eventos são contados e recontados de diversas formas, refletindo o universo de valores presentes em seu contexto gerador”.
O que observo sobre um passado virtuoso nas memórias dos indivíduos é uma recordação da juventude. Caetano Veloso no documentário "Uma noite em 67" responde a uma pergunta sobre a saudade daqueles tempos, se ele mantinha uma forte ligação com aquele período vivido. Talvez quem perguntou esperasse uma resposta sentimentalista, mas Caetano surpreendeu:"Não tenho saudade, a não ser pelo mero fato de eu ser fisicamente jovem. Disso eu tenho saudade.É muito melhor quando você tem 24 anos do que com 66. Das situações, não tenho muita saudade". Pois é. Tempos que remetem a peripécias que configuram o comportamento de muitos jovens. Quanto mais novo é o indivíduo em sua localização no passado, mais rica é a lembrança. Até mesmo adolescentes ousam falar “do seu tempo” quando curtiam a tenra infância. Temos apego ao passado, mas também a períodos onde não tínhamos tantas responsabilidades. Em criar filhos, manter um emprego, as instabilidades do casamento, as patologias que aparecem. Percebo que um doce passado associa-se com momentos de celebração e socialização, com grandes sucessos musicais que embalaram as primeiras, as efêmeras e as mais duradouras paixões. Sendo assim, o presente quase sempre se mostra em crise, sem identificação, difícil de compreender, até se tornar passado e iniciar um novo ciclo de memorialização.
Fontes:
ABREU, Regina. Patrimonialização das diferenças e os novos sujeitos de direito coletivo no Brasil. In: TARDY, C.; DOBEBEI, Vera (org.). Memória e novos patrimônios. Marselha: Open Edition Press, 2015. v. 1, p. 67-93.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. 3.ed. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2006. 268 p.