“O sentido da política é a liberdade”. Com essa frase concisa, Hannah Arendt fez uma afirmação conclusiva e de grande impacto. Para alguns pode soar simples demais, porém, a simplicidade se fez necessária para elucidar questões complexas no âmbito da filosofia política, às quais a pensadora alemã se propôs a responder ao longo de toda sua trajetória intelectual.
Através de fragmentos textuais compilados postumamente que resultaram na obra “O que é política?”, a filósofa não apenas emitiu a frase que citei no início do texto, como se propôs a demonstrar o raciocínio que a levou a tal conclusão. Apesar do caráter incompleto da obra, muitas reflexões pertinentes podem ser extraídas desses valiosos fragmentos. Nesse artigo, convido o leitor a participar da incursão que fiz por algumas das reflexões da velha Hannah (baiano que sou, não demorei em pegar intimidade com a pensadora alemã e já tratá-la por uma alcunha carinhosa).[1]
Arendt define que a política está baseada na pluralidade dos homens, ou seja, ela existe no espaço entre os homens, não externamente à eles e tampouco como um fator natural intrínseco aos mesmos. Se a política surge no espaço intra-humano, é o resultado das relações entre os seus participantes, percebe-se então uma oposição ao conceito grego clássico de zoon politikon, que definiria o homem como animal político em essência, como uma imanência natural. Arendt adota os princípios aristotélicos para compreender a política, mas o faz criticamente, pois entende que de forma apriorística o ser humano é a-político, pois nada em sua essência o define como zoon politikon; contudo seu caráter de animal político (definição aristotélica)[2] decorre exatamente da sua socialização com os demais e criação desse intra-espaço relacional.
A política organiza essas diversidades humanas, em termos relativos, por compreender que a igualdade alcançada entre os indivíduos é relativa, em resposta às suas diferenças. Não é o objetivo da política tratar do Homem em termos absolutos enquanto unidade, só lhe interessa Os Homens (plural), na medida em que suas diferenças são o objeto da discussão política. Arendt de forma sofisticada compreende que a isonomia em sua acepção mais completa, não diz respeito à igualdade legal entre os homens (percepção moderna do conceito); a isonomia trata da igualdade no exercício da atividade política, a liberdade para falar no espaço comum aos indivíduos, o que se conecta diretamente com sentido da política; voltaremos a esse tópico mais adiante.
O seu entendimento do funcionamento da vida política perpassa por elementos que antecedem a própria experiência de interação entre os indivíduos no espaço público, porque diz respeito à formação de ideias. Um desses elementos é o preconceito, que exerce uma funcionalidade vital na vida humana. Por mais estranha ou incômoda que essa última afirmação possa parecer, na perspectiva analítica proposta por Arendt, ela fundamenta a relevância do preconceito, a desconstrução do mesmo e o papel que a política exerce nisso.
Os homens são incapazes de constituir um julgamento sobre tudo que os cerca e não estariam dotados dos meios para fazê-lo, a experiência humana comporta apenas um número limitado de informações. Logo, o preconceito conduz os homens a discutirem suas questões cotidianas e Arendt não vê nisso um problema, pois o mundo social é composto por preconceitos e necessita deles para mover-se. De forma alguma isso significa a cristalização de uma falsa ideia, pois é nesse momento que a política aparece e cumpre um papel vital, segundo a velha Hannah: “Por isso, a política tem de lidar sempre e em toda parte com o esclarecimento e com a dispersão de preconceitos, o que não significa tratar-se, no caso de uma educação para a perda de preconceitos, nem que aqueles que se esforcem para tal esclarecimento sejam livres de preconceitos”.
Os preconceitos existem entre os homens como condição de suas percepções limitadas da realidade e das diferenças entre eles, cabe a política dissipá-los, pois ela representa a pluralidade dos indivíduos e existe no espaço entre eles. Entende-se aqui o preconceito como uma noção apriorística da realidade, que só incorreria em periculosidade a partir do momento em que fosse capaz de formular um juízo sobre os fatos. A partir daí manifesta-se sua face perigosa porque ao construir juízo sobre as coisas emite-se uma verdade supostamente baseada em parâmetros válidos e inquestionáveis. No espaço entre os homens são desfeitos tais pressupostos e a política os compelem a modificar o mundo.
Modernamente a política passou a sofrer preconceito; para Arendt esse preconceito estaria embasado pelo pavor que a política passou a instigar em sua capacidade de varrer a humanidade da Terra, pois agora as nações dispunham dos meios técnicos para a destruição em massa. Com o advento dos regimes totalitários, a humanidade testemunhou a politização da vida em todos os seus níveis e por uma irônica contradição, a diluição da mesma, a partir do domínio e controle cada vez mais inexoráveis do Estado da vida dos indivíduos, a burocracia e a técnica fizeram da eficiência um modo de se eliminar esse espaço entre os homens, despolitizando-os. A política moderna seria constituída de falsas impressões que observavam esse espaço de relações intra-humano como pérfido, onde prevalece os interesses mesquinhos e destacava-se as ideologias e seus defensores, sendo no âmbito internacional apenas uma expressão da violência entre as nações ou propaganda vazia de significado, redundava em opressão e redução dos seres humanos à condição de espectadores. Esse preconceito levaria ao fim da política.
Poderia nesse cenário de desesperança surgir a solução dos problemas humanos? Se a sociedade inevitavelmente caminhava para a extinção desse intra-espaço, como seria possível a política ter algum sentido? Arendt, apesar de tudo, enxergava com otimismo as possibilidades humanas e sua visão é fascinante. “O sentido da política é a liberdade”, o que isso quer dizer? Que a ação humana desencadeia continuamente um mundo de possibilidades e que a existência da humanidade se deve a essa necessidade imperativa de renovar-se mesmo diante do esgotamento do possível. A velha Hannah recusa o milagre enquanto uma categoria do extra-humano, para a filósofa é inerente à capacidade dos homens de realização do improvável, aquilo que está contra todas as probabilidades; simplesmente pelo fato de que o agir opera no âmbito da liberdade! Se existe algum milagre, tal fenômeno é fruto apenas do potencial humano e seu incrível poder de recomeçar e desencadear novos processos e se impor diante deles. “O milagre da liberdade está contido nesse poder começar que, por seu lado, está contido no fato de que cada homem é em si um novo começo, uma vez que por meio do nascimento, veio ao mundo que existia antes dele e vai continuar existindo depois dele”.
Tudo isso só é possível porque somos dotados de liberdade, que não é o mesmo que livre arbítrio, pois este compreende o poder de escolha dentro de possiblidades que nos são dadas, onde não podemos determinar a natureza do que está posto; porém a liberdade tratada por Arendt é muito maior do que isso.[3] Ser livre trata-se de poder desencadear algo, pôr em movimento, de começar e dominar, do termo grego “archein”, colocar-se diante das circunstâncias por meio do AGIR, uma recusa de operar dentro dos limites do que nos foi imposto e realizar o improvável. É na política que essa liberdade se realiza justamente porque ela é o espaço por excelência do agir humano.
Para compreender essa relação entre política e liberdade, Arendt retomou o argumento grego clássico para demonstrar a importância do espaço público na expressão da liberdade política dos indivíduos. Na definição grega esse local era a polis, pois representava o âmbito de circulação dos homens livres onde se encontravam como iguais (isonomia neste sentido trata de uma condição de igualdade política, não versa sobre questão de justiça) e exerciam seus atributos diferenciais. Esse exercício ocorria porque o homem grego estava liberado para tais atividades, visto que havia uma separação da vida produtiva-laborativa, pois outros indivíduos estavam excluídos dessa vida política (forasteiros, escravos e mulheres), permitindo assim a libertação para o ócio, ou seja, a vida contemplativa. Os gregos compreendiam que a liberdade só acontecia no espaço da polis onde se moviam entre iguais, fora da cidade isso não existia (a cidade aqui entendida dentro dos pressupostos culturais helênicos), somente na urbe e no âmbito público, o mundo privado era a representação da vontade de um só e não era uma manifestação plena da atividade cívica.
Considero necessário fazer algumas observações sobre essa retomada de Arendt do pensamento político grego. A velha Hannah não fez esse retorno acriticamente; ela compreendia que as condições de exclusão que permitiram o acesso à vida contemplativa permaneceram ou deveriam permanecer no passado, portanto, se o homem grego pôde entregar-se à atividade política porque outros permaneceram excluídos dela, na sociedade contemporânea esse direito ampliou-se e a sua tendência deveria ser um acesso progressivo. O que importa no argumento da filósofa e o que de fato ela deseja justificar como legado relevante dos gregos é a constatação de que o sentido da política está na existência de relação entre os homens em liberdade, onde não há o domínio, nem controle, tampouco o uso da força ou coação. Somente o poder do convencimento e da cooperação. Esse é o resgate conceitual do passado que ela faz. Para exemplificar, segue abaixo as palavras da própria:
“A coisa política entendida nesse sentido grego está, portanto, centrada em torno da liberdade, sendo liberdade entendida negativamente como não-ser-dominado e não-dominar, e positivamente como um espaço que só pode ser produzido por muitos, onde cada qual se move entre iguais. Sem esses outros que são meus iguais não existe liberdade alguma e por isso aquele que domina outros e, por conseguinte, é diferente dos outros em princípio, é mais feliz e digno de inveja que aqueles que domina, mas não é mais livre em coisa alguma. Ele também se move num espaço no qual a liberdade não existe, em absoluto.”
A beleza dessa passagem também traz consigo um argumento relevante: não podemos entender a liberdade onde ela não existe. Por isso governos tirânicos e ditaduras eliminam a liberdade para toda a sociedade e destroem a possibilidade do potencial humano ao reduzir a arena política à burocracia e eficiência instrumental; governos despóticos podem até conseguir a promoção do “bem estar comum” e enriquecimento material, mas a extinção da liberdade acarreta um custo humano incalculável.
A liberdade do AGIR e do FALAR eram similares na concepção grega e essa similitude é fundamental para entendermos o argumento de Arendt, pois se a ação individual produz os resultados sobre a vida política e consequentemente modifica o mundo dos homens, o falar é o meio pelo qual essa ação ganha uma dinâmica própria de reprodução da sociedade. Não existia para os gregos a separação entre o falar e agir; a liberdade somente é possível quando os homens externalizam suas impressões sobre a realidade sobre a qual operam e assim de fato a conhecem. Se o homem só conhece o mundo a partir do seu ponto de vista, para acessar o conhecimento que lhe escapa sobre seu próprio universo, só poderá fazê-lo mediante um mundo comum a outros, e na medida em que os demais falam sobre isso; o real torna-se cognoscível de forma compartilhada entre os sujeitos.
Esse seria o tal “milagre” humano, alcançável porque a política existia como espaço de relação entre os homens e enquanto esse meio persistisse, nossa verdadeira liberdade estaria garantida. Por isso o sentido da política é a liberdade, pois somente através do exercício dessa atividade os indivíduos garantiriam a manutenção do que lhe é precioso. Percebamos que Arendt eleva a política à uma condição muita acima de um mero imperativo de organização social humana que arbitra sobre os interesses dos homens; em verdade, somente emancipados das necessidades básicas, poderíamos plenamente nos voltar à política. A velha Hannah nos chama a atenção para a necessidade de abandonarmos o nosso preconceito contra a política e enxergarmos nesse contexto a possibilidade de mudança sempre, porque, caso contrário, corremos o risco de expurgar a política e eliminarmos o espaço de relações entre nós. O que sobraria? É perigoso especular, contudo, a pensadora alemã nos lembra das possibilidades pavorosas para a humanidade em caso desse expurgo, onde pululam sistemas utópicos que projetam sociedades apolíticas. Essas utopias custaram inúmeras vidas e Arendt foi testemunha ocular de algumas dessas tragédias humanas.
A política em Arendt é uma condição necessária para a realização da liberdade, daí a conclusão sobre o seu sentido. Estaríamos condenados à liberdade? Não ousaria dizer tanto, todavia estamos condenados a começar de novo e agir sobre o mundo, enquanto formos parte dele. Talvez seja um lirismo vão da minha parte, acreditar de modo similar no milagre humano, mas faz sentido quando observamos que a nossa história é uma sequência infindável de ações que subverteram o que era dado como improvável. Nossas possibilidades não se esgotam na política, contudo encontram nessa atividade um caminho para a liberdade. Então, caro leitor, me permitirei partilhar desse otimismo inspirado pela velha Hannah.
REFERÊNCIA:
ARENDT, Hannah. “O que é política?”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.
[1] Num ato de malandragem de cunho autoral, peguei emprestada essa alcunha do meu amigo e colunista do Soteroprosa, Miguel Pereira, também apreciador das reflexões da velha Hannah, com quem tenho longas conversas sobre o pensamento dessa nobre senhora. Dedico a ele esse artigo. É o mínimo que posso fazer depois da minha malandragem.
[2] Em verdade, a definição de Aristóteles trata o homem como “animal social”, dessa definição
entende-se o homem como animal político.
[3] Arendt utiliza o arcabouço teórico de Kant.