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Foto do escritorCarlos Henrique Cardoso

Danças e ritmos: Rebolados desde sempre


Roda de samba, de Caribé

Estava eu lendo histórias da Bahia velha quando me deparei com o termo “umbigada”. Óbvio que já conhecia essa palavra, que designa uma espécie de dança ou balanço, de origem africana e que precedeu o lundu e o samba – ou caminhou junto com estes. A umbigada prevaleceu durante muito tempo e por séculos na vida de nossa cidade. Numa terra que sempre foi festeira, depois de muitas rezas e orações, lá estavam nossos ancestrais nas festividades profanas exercendo o que o corpo baiano sabe bem fazer: dançar e remexer.


Pra se ter uma ideia de como festejávamos, nos primeiros anos do século XIX tínhamos 57 feriados, segundo o historiador Emanuel Araújo. 57! Fora sábados e domingos. O que praticamente deveria rolar nesses dias? Batucada, cachaça e feijoada. Nossa predisposição para o sacolejo e comilança continua até hoje.


Voltando à umbigada, lembro que quando criança admirava as meninas dançando no pátio do colégio uma ciranda que muita gente conhece e ainda devem brincar por aí:


“Sai, sai, sai,

Ô, piaba,

Saia da lagoa.

Bota a mão na cabeça,

Outra na cintura.

Dá um remelexo no corpo,

Dá uma umbigada

Na outra” (domínio público)


Ou seja, a criançada brincava utilizando “umbigadas”, o que leva a crer que as pândegas de outrora contavam com a participação de pimpolhos acompanhando os passos de seus responsáveis, criando um tipo de “umbigada matinê”. Até aí nada demais. Acontece que os tempos atuais estão mais vigilantes e parece que um churrasco na laje com muita gente a se refestelar com bebedeira e arrocha seja coisa do passado e ter a meninada nesse meio torne todo o festejo um antro. Quero dizer que existem debates preocupantes sobre a interferência das mídias sociais e da TV sobre nossas inocentes crianças, enquanto na casa ao lado rola a maior esbórnia com os menores acompanhando a patuscada e se divertindo correndo, pulando, dançando e observando seus parentes na maior folia. Ou seja, o controle social sobre a infância incide sobre as festas, que seriam impróprias para os guris.


Impressiona mesmo, diante de leitura mais atenta aos ritos festivos de antigamente, que nossa sociedade fique espantada com rebolados “na boquinha da garrafa”. Ou é hipocrisia ou ignorância de nossa história. Frear ímpetos lascivos nas pessoinhas ainda em tenras idades parece ser uma grande preocupação. Mas onde está o defeito? Na dança ou no olhar cobiçoso do homem?


A ciranda citada acima é uma brincadeira que as meninas realizavam sem intenções de seduzir qualquer garoto a apreciar o rodopio (não estou pisando no terreno da ingenuidade juvenil, mas da brincadeira existente). A dança faz parte de nossa identidade e o rebolado mais ainda, vide o bambolê. Reparem que as meninas estão sempre entretidas em algo que coloquem seus quadris pra funcionar. E a conotação sexual nem precisa estar presente no remelexo. Este vem da observação do adulto e da arte da sedução que aparece após a primeira década de vida. Mas pra quem é criança a dança é o conhecimento do próprio gesto corporal. Recordo que quando Carla Perez era o sucesso da vez, uma pediatra chegou a conceder uma entrevista afirmando que garotas que imitassem a famosa dançarina poderiam desenvolver a menarca mais cedo. Não sei que abordagem cientifica foi utilizada pela mesma para chegar a tal conclusão. No entanto, parece que ela não entendia muita coisa sobre musicalidade, rebolado, e festas na Bahia de Todos os Santos. Acompanhar os passos de um ritmo nada tem a ver com promiscuidade ou sexualidade sendo aflorada. Umas vão dançar mais, outras menos, umas vão ser mais saidinhas, outras nem tanto. E aí entram no liquidificador vários ingredientes, mas suar na cadência do samba ou no bate-coxa não são carimbos de um passaporte para a terra da sacanagem.


Deixemos a umbigada de lado e para exemplificar que nossos ritmos sempre tiveram sim uma pitada e tanto de lascívia. E continuamos a produzir músicas e ritmos, letras que vão da sugestão à descrições de coitos. Torcemos nossos narizes, como de costume. Lamentamos o mau gosto. Mas isso é algo novo? Já tivemos um maxixe (dança sensual que sacolejava os esqueletos) que tinha uma letra…bem…. O que é isso???


Ai, ai, como é bom dançar, ai!

Corta-jaca assim, assim, assim

Mexe com o pé!

Ai, ai, tem feitiço tem, ai!

Corta meu benzinho assim, assim! (Gaúcho, Chiquinha Gonzaga)


A expressão “corta jaca” talvez não seja apenas um talher da Tramontina abrindo uma fruta. No contexto daquela época podia ser mais que isso... E não só caso de época, mas de nossa caliente tropicalidade. Só a título de informação, essa música foi composta há mais de cem anos. E também vou ocultar a informação que os acordes desta “lâmina afiada” horrorizou os participantes de um baile realizado no Palácio do Catete - então residência oficial da Presidência da República, no Rio de Janeiro – quando a primeira-dama Nair de Teffé executou a música, causando a ira do então senador Ruy Barbosa que discursou no dia seguinte sobre o episódio, alardeando o escândalo de uma nobre mulher ter tocado tão grotesca música em uma festa da elite. Baiano que era, parece que Ruy não era muito chegado no “lepo lepo”.


E não vou ficar aqui colocando outros exemplos para tecer um fio autoral daqueles tempos até nosso pagode. Retornando ao papo da dança infantil, como consertar maneiras nada aprazíveis para nossos jovens? A escola. Isso mesmo: educação! Mas nossos institutos de ensino estão mais voltados para o mercado que o ajuste de etiquetas. E esses espaços também promovem festas... E o que adianta sair do colégio e ao chegar na rua ouvir a quebradeira na casa do vizinho e abrir um sorriso com o convite do mesmo a participar da gandaia? Seria a perseguição e censura musical uma questão de limites entre classes sociais? Não querer que seus filhos compartilhem os mesmos rituais de castas mais baixas? Estabelecer fronteiras entre adultos e crianças nas festas de família parece ser um intuito em se colocar num patamar social superior do que um mero capricho restritivo ao cancioneiro popular. Ou se inflamar com mostras de arte, quadros “de pedofilia”, homem nu, não sejam preocupações em esconder algo que acham que jamais houve nas memórias artísticas do nosso país? É só se atentar ao episódio descrito no parágrafo acima, em um baile da aristocracia republicana para concluirmos que não há nada novo no front. Pode ser até viagem minha que nada do tipo acontece atualmente. Mas já me adianto, porque a coisa não tá muito boa pro lado mais cultural, digamos assim.


Quando se fala em música e dança aqui por essas pradarias, se pensa em diversão. Algo que até se propaga como programação turística. E é isso que nossos letristas fazem e querem: divertir o povo, e não levarem um Grammy Latino.


RISÉRIO, Antônio. Uma história da Cidade da Bahia. Salvador: Versal Editores. 2004.


http://chiquinhagonzaga.com/wp/corta-jaca-no-catete-centenario-da-alforria-da-musica-popular-brasileira/



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