"Eu não acredito que a escravidão deixe de atuar, como até hoje, sobre o nosso país quando os escravos forem todos emancipados; A lista de subscrição, que resulta na soma necessária para a alforria de um escravo, dá a um cidadão mais ao rol dos brasileiros; mas é preciso muito mais do que a esmola dos compassivos, ou a generosidade do senhor para fazer desse novo cidadão uma unidade digna [...] Da mesma forma o senhor. Ele pode alforriar os seus escravos, com sacrifício dos seus interesses materiais [...] porém o espirito [ da escravidão ] não deixará de incapacitá-lo para o cidadão de um país livre, e para exercer as virtudes que tornam as nações mais poderosas pela liberdade individual do que pelo despotismo". (NABUCO, 2011, p. 75-76).
Minha coluna de hoje vai navegar pelo pensamento social e político brasileiro, com o intelectual, homem público e diplomata do século XIX, o ilustre Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo. Um dos grandes defensores do abolicionismo no Brasil.
Nabuco foi considerado um monarquista, de ideias conservadoras, liberais e defensor da Democracia. Sua obra mais reconhecida, Que é o Abolicionismo, lançada pela primeira vez em 1883, deveria ser lida e relida por todo brasileiro que deseja compreender as raízes de muitas mazelas sociais que ainda perduram na sociedade brasileira.
No século XIX, o intelectual pernambucano diagnosticou que a explicação para o amorfismo do país, o atraso antidemocrático brasileiro, foi fruto da escravidão. 300 anos de escravidão geraram uma nação desforme e incompatível com o desenvolvimento econômico, político e social, como o exemplo inglês da época.
Como eram os primeiros habitantes colonizadores do Brasil? Eis as palavras duras de nosso compatriota: “Portugal descarregava no nosso território os seus criminosos, as suas mulheres erradas, as suas fezes sociais todas, no meio das quais, excepcionalmente vinham imigrantes de outra posição.” (NABUCO, 2011, p.25). Portanto, são esses indivíduos – espíritos aventureiros - que irão formar, juntamente, com os negros e aborígenes, a sociedade brasileira. A baixa estirpe moral dos portugueses vindos ao Brasil formará uma casta parasitária de senhores de escravos e donos das terras.
A escravidão foi muito além da relação senhor e escravo. Ela afetou toda a estrutura social e todas as classes. De um lado, aqueles que repudiavam o trabalho, de outro, os que eram obrigados a trabalhar. O trabalho sempre foi desvalorizado pelas elites brasileiras como sinal de inferioridade, e a internalização do servilismo pelos negros geraria relações muito mais complexas no Brasil, desaguando em uma sociedade extremamente dependente do Estado, de caráter paternalista.
Entre outras questões, a escravidão como elemento central para o atraso do Brasil, legou a falta de espírito cívico nacional. Eis a causas pérfidas desta fraqueza: a escravidão gerou pequenos feudos aristocráticos que isolavam a comunicação com o resto da província e do país; a preocupação dos senhores era mais com o número de escravos-mercadorias do que sistematizar, tornar permanentes e produtivas as terras - mais capitalista - numa visão de progresso, que pudesse beneficiar a Nação; territórios dispersos, anárquicos, abandonados, sem vida; homens livres e pobres - inorgânicos, nem escravos, nem cidadãos - viviam a esmo, como mendigos, nômades sem terras e a mercê do patriarcalismo dos senhores, distantes de qualquer identidade nacional. Desta forma,
"A escravidão contaminava os mais diversos campos da vida nacional, desvalorizando o trabalho, viciando a instrução, comprometendo a indústria, contaminando o Estado, alimentando o patrimonialismo, sufocando a cidadania. A escravidão era para ele a condição sociológica que explicaria de maneira cabal o atraso brasileiro". (CARDOSO, 2016, p.19)
Todas as questões descritas acima não favoreceram a indústria, o comércio, o progresso material. Além disso, o país respirava imoralidade. Esta, mais associada à dificuldade de olhar para além do interesse pessoal. Outro grande problema social era a hipertrofia do funcionalismo público, visto como um viveiro político. O emprego público carregava nas “costas” as antigas famílias ricas, que desleixaram-se com as terras, se endividaram e tornaram-as improdutivas. O Estado brasileiro ainda sustentava os chamados homens de talentos, que não tiveram oportunidades de desenvolverem suas capacidades, pois o país dava pouco crédito a ciência, a literatura e a filosofia - o que não parece distante da realidade atual. São funcionários filhos da escravidão.
A escravidão foi a causa de uma corrupção social que afetou diretamente a representação política do país, centralizada nas mãos da realeza, criando uma arquitetura social voltada para a dependência, ou, o que dá no mesmo, do Estado visto como um patrimônio privado. A referência abaixo ajuda na compreensão.
O sistema representativo é assim um enxerto de formas parlamentares num governo patriarcal, senadores e deputados só tomam a sério o papel que lhes cabe nessa paródia chamada democracia pelas vantagens que auferem. Suprima-se o subsídio e forcem-nos a não se servirem da sua posição para fins pessoais e de família [...] Esse governo é o resultado, imediato, da prática da escravidão pelo país. Um povo que se habitua a ela não dá valor a liberdade nem aprende a governar-se a si mesmo. Daí a abdicação geral das funções cívicas, o indiferentismo político, o desamor pelo exercício obscuro e anônimo da responsabilidade pessoal, sem a qual nenhum povo é livre, porque um povo livre é somente um agregado de unidades livres: causas que deram um resultado a supremacia do elemento permanentemente e perpétuo, isto é, a monarquia [...] (NABUCO, 2001, p. 71-72).
O que seria do Brasil após a Abolição? Como tornar senhor e escravo cidadãos, que de um lado vigora o espirito do despotismo, da autoridade, e do outro o servilismo? Profeticamente, Nabuco apontou que mesmo depois da escravidão a internalização dos ideais democráticos não seriam de imediatos. O espírito da escravidão assombraria a sociedade brasileira por longos períodos , pois capacitar um cidadão livre, autônomo, com uma consciência de tolerância, justiça, igualdade e liberdade individual, não se faria de um dia para outro. Três séculos de escravidão carregariam cicatrizes históricas para um país pouco afeito a igualdade.
Não bastaria (e atualizando o autor, não bastou) acabar com a Abolição, alargar a cidadania e criar um espírito do trabalho livre. Era necessário desenvolver bases estruturais voltadas para educação – moral e cívica - dos escravos. E, mais do que isso: incutir em todas as classes o espírito de igualdade perante a lei, de liberdade e de ordem.
Fernando Henrique Cardoso, em Pensadores que inventaram o Brasil, apontou que a preocupação de Nabuco era de que a falta de responsabilidade dos brancos tornaria os negros de escravos à excluídos da sociedade, inertes quanto à inclusão do processo produtivo. Ainda vivemos uma cultura de exclusão social tão viva e tão algoz como outrora. Passados 129 anos da Abolição da Escravatura, as marcas do passado continuam muito presentes.
Até a próxima!!!
Fonte da imagem
http://www.academia.org.br/academicos/joaquim-nabuco
Referências
CARDOSO, Fernando Henrique. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013
NABUCO, Joaquim. Que é o Abolicionismo? São Paulo: Peguin Clássics Companhia de Letras, 2011.