A democracia não é bem uma pintura coerente, homogênea, uma espécie de onipresença, ao contrário. Ela tem oscilações, imaginários, especialmente quando o modelo democrático norte-americano e o brasileiro se encontram na esquina. Minha hipótese, nesse ensaio, não é apenas sugerir possíveis diferenças entre esses dois modelos, mas apresentar seus contornos como contraditórios entre si. Essas diferenças, por outro lado, não tocam naquilo de óbvio como, por exemplo, o sistema eleitoral. O objetivo é um olhar fenomenológico sobre a democracia, observando a forma como esse regime afeta indivíduos concretos e interfere em seus imaginários. Ou seja, vamos partir da democracia como uma ferramenta prática, levando em conta como atores sociais concretos a manipulam, para além de qualquer teoria política.
Todos sabem, e isso não é nenhuma surpresa: instituições humanas são problemáticas, incoerentes, corruptas. A corrupção, tema hoje mais que popular, sempre foi matéria presente, mesmo antes da imprensa. Nos EUA, antes da eleição de Donald Trump, canais conservadores como a Fox News, por exemplo, bombardeavam a todos com noticias de escândalos, crises, principalmente noticiais envolvendo o governo Obama. A corrupção era uma constante, assim como no Brasil. Contudo, temos aqui uma grande diferença entre esses dois países, em especial no modo como a democracia é experimentada no cotidiano, no modo como ela afeta o corpo de cada um.
A democracia norte-americana sempre foi mais do que um regime político, como é possível perceber desde sua fundação. Democracia aqui é sinônimo de pacote civilizatório, uma espécie de produto a ser exportado. Ao contrário do Brasil, a política nos EUA sempre foi motivo de orgulho, mesmo nos períodos mais agudos de abstenção, ou de crise, como no governo de Bill Clinton. O que seria a primavera árabe, em 2011, com toda sua intensidade e expectativa, sem a referência da democracia norte-americana, sem seu exemplo exportado?
Como já disse, casos de corrupção, escândalos de todas as ordens, sempre foram matéria de destaque, assim como no Brasil. Como bem diz Badiou, o escândalo é um produto disputado dentro do nosso universo, já que todos querem ver, compartilhar e experimentar alguma coisa do tipo. A diferença, quando você analisa mais de perto essas mesmas matérias, repousa no fato de que os casos de escândalo nos EUA são vistos como exceção, como algum acidente no cenário público. É mais ou menos o que acontece hoje com o caso Trump. A democracia, sempre protegida, nunca é associada a deslizes concretos ou falhas individuais. Ela, ao contrário, permanece sempre pura, intocada, preservando assim sua idealidade.
No Brasil, ao contrário, a coisa segue outro rumo. A corrupção existe, o escândalo também, embora esses deslizes não são vistos como traços individuais, acidentes, excentricidades. Diferente dos EUA, no Brasil os problemas políticos são associados ao próprio regime, à democracia, criando assim um clima de desconfiança com as próprias instituições. Embora, claro, essa desconfiança seja sentida em um nível fenomenológico, ou seja, em um nível não reflexivo, espontâneo. Não existe uma teoria por trás, afinal, estamos falando do senso comum. O que existe é uma espécie de resistência intuitiva, um “bloqueio natural”.
A corrupção, no Brasil, é sentida como um problema bem mais profundo, e não apenas algo contingente. Os casos individuais que povoam a TV, como resultado, apenas aparecem para reforçar o quadro de desconfiança institucional, criando um pessimismo bem mais sólido do que nos EUA. Para os norte-americanos, todo o seu corpo político pode ser manchado, todos seus atores envolvidos em alguma polêmica, e ainda assim, curiosamente, nada disso consegue afetar sua democracia.
A democracia não é bem um conceito, um recurso usado por filósofos políticos. Seus contornos não surgem em um escritório bem arrumado, com uma cadeira confortável e uma mesa semi-iluminada. Democracia é coisa de mundo, coisa de corpo, sendo, portanto, vista, sentida e justificada pelo sujeito comum, aquele do cotidiano. Para entender sua real definição, não é preciso abrir um dicionário qualquer, ou algum manual filosófico; basta observar o modo como essa mesma democracia afeta os corpos, direciona olhares e, principalmente, constrói expectativas. EUA e Brasil, nesse sentido, não apenas definem a democracia de um modo diferente, mas a experimentam de outras formas também; formas essas irredutíveis entre si, ao menos quando o olhar sociológico é direcionado ao sujeito comum, aquele do cotidiano.
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https://oglobo.globo.com/brasil/hora-do-voto-imprima-sua-cola-eletronica-tire-suas-duvidas-na-reta-final-14079433