Por uma questão de prudência e bom senso, a futurologia deve ser evitada, especialmente ao se falar dos rumos de um país. Contudo, ouso dizer com um elevado grau de certeza, que no Brasil 2018 será um ano de cordialidades. Em ano eleitoral, a política traria à tona mais uma vez, um dos nossos traços culturais distintivos que permeia nossa vida social em diversos âmbitos: a cordialidade.
Em nosso senso comum, identificamos a cordialidade como uma característica do nosso povo, quem nunca ouviu a expressão “o brasileiro é um povo cordial”? E com isso, associamos diversos outros adjetivos e expressões que atravessam nossa história e caracterizam nosso comportamento, como “jeitinho brasileiro”, “malandragem”, “você sabe com quem está falando?”, “malemolência”, até a versão mais contemporânea do “HUE HUE BR”[1]; essas expressões em geral teriam como substrato implícito a noção de cordialidade. Esse traço que a primeira vista nos remete a uma qualidade no trato social, oculta características que pelo contrário, representariam atitudes que endossariam práticas sociais bem danosas à sociedade brasileira, da vida familiar à vida política.
No estudo pioneiro e clássico “Raízes do Brasil” de 1936, Sérgio Buarque de Holanda (o pai do Chico)[2] investigou a formação histórico-cultural da nossa sociedade, dentre os seus temas de análise esteve a confluência muito comum no Brasil entre os interesses privatistas nos assuntos públicos do Estado. Partindo de uma metodologia analítica inspirada em Max Weber, Sérgio Buarque estabeleceu tipificações para entender o brasileiro em sua gênese histórica e comportamental. Dentre os seus modelos tipificados mais célebres está o “homem cordial”, que segundo ele, seria um tipo ideal do brasileiro. Em suas considerações, ele trabalhou com constructos analíticos duais, não com o mero intuito de fazer uma oposição conceitual, mas para demarcar diferenças importantes e compreender singularidades.
Para definir o que seria esse homem cordial, a sua análise mergulhou em nosso passado colonial e avançou nos séculos seguintes buscando características que perduraram em nossa formação. A empresa colonial no Brasil não foi uma obra fácil e deve-se reconhecer a capacidade do colono português em realizar tal objetivo, especialmente pela maneira pouco articulada com a qual a Coroa Portuguesa lidou com o processo de ocupação e exploração das terras de sua possessão ultramarina, concentrando-se nas regiões costeiras.
Na tipologia de Sérgio Buarque duas figuras conceituais de colonizador foram elaboradas: o trabalhador e o aventureiro. O trabalhador representava o sujeito com uma perspectiva mais arraigada de longo prazo, que focava nas dificuldades a serem vencidas cotidianamente e produziu de modo a buscar uma rentabilidade contínua, mesmo que ao custo de maiores ganhos imediatos. A estabilidade, segurança e o trabalho com uma compensação no longo prazo eram avessas ao tipo aventureiro, a sua ética estava ligada a uma disposição para empreendimentos do tipo predatório, da ousadia das descobertas, um tipo ambicioso que buscava a riqueza sem medir esforços e rompendo as fronteiras do mundo conhecido; para o aventureiro o que importava era o resultado final, não o processo. O português seria o segundo tipo. A saga colonial portuguesa estaria afeita a obtenção rápida de riqueza de caráter propenso ao imediatismo, perceptível mesmo em sua ocupação e exploração da terra, com o fomento de grandes latifúndios extrativistas que por muito tempo permaneceram rudimentares em técnicas agrícolas.
Essa característica aventureira seria ibérica, tanto que prevaleceu como pilar da colonização da América; no entanto, foi um traço marcante no colonizador lusitano, combinado com o que Sérgio Buarque chamou de plasticidade social portuguesa. No âmago de uma estrutura hierárquica pouco rígida em terras brasileiras, a proliferação da indolência dos costumes e instituições se deu acentuadamente, o português, dentre os europeus, não possuía o que Sérgio Buarque chamou de “orgulho de raça”, devido a uma origem histórica diferenciada, mais propensa a miscigenação étnica e cultural, o que tornaria a sua adaptação aos costumes da terra e interação com o gentio mais fortes. Tais fatores constituíram a chamada plasticidade social portuguesa e permitiram que eles fossem os pioneiros na construção de uma grande nação nos trópicos.
Se outrora esses elementos colaboraram para a formação de um povo, posteriormente se tornaram uma barreira para constituição de uma nação mais moderna, no sentido weberiano adotado por Sérgio Buarque[3]. A ausência de coesão da estrutura social no Brasil seria uma marca distintiva de nossa vida social e um óbice para o desenvolvimento do país, enraizado de maneira profunda em nossos costumes. Nossa formação histórica e práticas sociais evidenciavam uma aversão ao associativismo horizontal entre os indivíduos, ou seja, os homens não cooperavam visando resultados que transpusessem o espaço privado de alguns poucos, os empreendimentos aqui separavam os indivíduos, delimitando comportamentos hierárquicos, oligárquicos e personalistas. Desta forma, as relações sociais se caracterizavam por uma ampliação do círculo familiar, de trato intimista e personalista, onde o que prevalecia era a vontade de poucos, normalmente ocupantes de posições de poder, uma reprodução de uma lógica patriarcal e privatista. Nesse ínterim, o Estado não escapou à essa dinâmica e a sua gerência (ou ingerência) se deu baseado nesses mesmos princípios. Esses elementos seriam o substrato fundamental do “homem cordial”.
Produto autenticamente tupiniquim, o homem cordial seria o oposto da noção de civilidade necessária às sociedades fundadas em princípios de isonomia nas relações sociais, impessoalidade e respeito aos valores tipicamente republicanos. O impulso que conduz o homem cordial é a emotividade fundada na construção de relações intimistas que perpetuam privilégios sociais, um culto à personalidade individual que reitera as vontades particularistas mesmo nas esferas públicas, um estreitamento nefasto do âmbito familiar com as instituições políticas. A impessoalidade do sistema administrativo, dos seus funcionários e os aspectos institucionais que privilegiassem a igualdade entre os cidadãos seriam repudiados pelas nossas práticas cordiais, refratárias a tudo que fosse avesso ao particularismo de natureza familiar. Nas instâncias estatais imperava uma lógica patrimonialista corroborada pela não separação do público e privado. A cordialidade não deve ser confundida com civilidade e “boas maneiras”, apesar de supostamente estar revestida dessas qualidades. A aparência é o que norteia tal conduta, mas uma aparência diferente da polidez, que seria um ritualismo social necessário à conservação do espaço entre os indivíduos, espaço esse suprimido pelo homem cordial. A intimidade das relações entre os indivíduos só reiteraria esses ritos e reforçaria as estruturas sociais que faziam da sociedade uma extensão da família oligarca e patriarcal. Aquele famoso ditado popular brasileiro, por vezes atribuído a Getúlio Vargas, canonizaria tal conduta: aos amigos tudo, aos inimigos, a lei.
Diante de todos os elementos explicados anteriormente, percebemos que qualquer semelhança do Brasil estudado por Sérgio Buarque com o Brasil dos Sarneys, dos Neves, dos Magalhães, dos Vieira Lima, dos Covas, etc. não é mera coincidência e sim uma constatação simples, de que a política em nosso país não é apenas um negócio, mas um negócio de família. Não precisamos investigar muito para descobrir como os nossos representantes políticos, seja no Senado, nas Assembleias Legislativas ou demais órgãos do Estado, fincaram raízes profundas em nosso sistema representativo; não faltarão exemplos de senadores, deputados e presidentes dos mais variados partidos, que fizeram das instituições políticas a extensão das suas casas e interesses privatistas, com nomes de filhos(as), sobrinhos(as), netos(as), amigos(as) e afins ocupando cargos públicos de diversos tipos. O escândalo recente da deputada federal Cristiane Brasil do PTB, filha do presidente do mesmo partido, que também é filho e neto de políticos petebistas (é quase espiral genealógica infinita), nomeada e seguidamente suspensa do cargo de Ministra do Trabalho é só uma pequena demonstração de como o homem cordial encontrou no Brasil o seu habitat.
A política no Brasil se faz com uma boa dose de cordialidade, pois as instituições políticas não estão dissociadas das experiências culturais, se nossas práticas sociais em seu âmago estão vinculadas a essa herança personalista, não surpreende o diagnóstico de Sérgio Buarque de que nosso Estado não atingiu a maturidade política de seus quadros institucionais, tampouco das ideias que afirmava defender, pois a impessoalidade estatal, a racionalidade burocrática do sistema administrativo e os valores democráticos não vingaram efetivamente em solo brasileiro, muito mais fértil às práticas de favorecimento dos indivíduos articulados próximos das figuras de poder e prestígio, assim como dos jogos de acomodação política. Como afirmou Sérgio Buarque, “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”.
O homem cordial que existe em cada um de nós tende a reaparecer não apenas em nossos representantes políticos, mas também em nossas atitudes quando estamos diante da possibilidade de escolher aqueles que irão governar nosso país. A troca de favores disfarçada de cordialidade, nada mais é do que a corroboração da violência e da corrupção em sua forma menos perceptível. De um lado temos a erudição e lucidez analítica de Sérgio Buarque, que mesmo passados 82 anos da publicação de sua obra ainda nos permite refletir sobre nossa condição enquanto sujeitos no Brasil. Por outro lado, temos a perspicácia do conhecimento popular, que reconhece nossos defeitos e tece críticas sagazes, a exemplo do sambista Bezerra da Silva, que em sua canção Candidato Caô Caô, demonstra de forma perspicaz a máscara do homem cordial brasileiro; como explicitam as estrofes a seguir:
“Ele subiu o morro sem gravata
Dizendo que gostava da raça
Foi lá na tendinha
Bebeu cachaça
E até bagulho fumou
Jantou no meu barracão
E lá usou
Lata de goiabada como prato
Eu logo percebi
É mais um candidato
Para a próxima eleição
[...]
Meu irmão se liga
No que eu vou lhe dizer
Hoje ele pede seu voto
Amanhã manda a polícia lhe bater”
Portanto, em 2018 estão reservadas para nós muitas práticas cordiais, que não vem apenas da classe política, mas que reproduzimos enquanto povo e por vezes não nos damos conta de quão perigosa é tal conduta. Não estou afirmando que toda forma de cordialidade da vida social brasileira é negativa, só não podemos fechar os olhos para os comportamentos que de forma sutil e quase imperceptível nos faz reproduzir costumes que perpetuam mazelas sociais e reproduzem sórdidas relações de poder. Afinal, em 2018, ano eleitoral e de Copa do Mundo, nada mais desagradável do que tomarmos novamente 7 a 1, no futebol e na política.
[1] A expressão “hue hue BR” é uma gíria utilizada na internet que denota um comportamento de zoeira nas redes sociais e afins, também utilizada para identificar os usuários virtuais brasileiros considerados “trolls”.
[2] Que os leitores me perdoem essa brincadeira, da qual o próprio Sergio Buarque tinha consciência e fora alvo. Muito se dizia da notoriedade adquirida por Chico Buarque ter ultrapassado a notoriedade do pai no quesito fama, comparação que por sinal considero injusta, dada a importância incontornável de Sérgio Buarque para o pensamento social brasileiro. No entanto, piada feita, convido o leitor curioso a constatar na própria barra de pesquisa do Google tal fato, colocando a frase “pai do Chico” na busca. Eu testei.
[3] Não me proponho nesse espaço fazer uma discussão mais aprofundada sobre o entendimento de Weber sobre a modernidade ocidental. No entanto, de maneira excessivamente simples, elenco que em sua compreensão (em certa medida adotadas por Sérgio Buarque), a modernidade ocidental se expressava num quadro conceitual de um Estado burocrático racional, de instituições políticas eminentemente democráticas burguesas e um mercado capitalista competitivo de livre iniciativa.
REFERÊNCIA:
HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Raízes do Brasil”. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.