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Foto do escritorThiago Araujo Pinho

A MANCHA DE CAFÉ NO JALECO BRANCO: O CORPO FENOMENOLÓGICO VS O CORPO SEM ORGÃOS


Nossa linguagem é uma ferramenta importante, muitos diriam até conveniente. Ao ser articulada, na vida cotidiana, ela garante um contato confortável, sem muito risco, com a realidade ao redor. Os elementos que mobiliza, em suas histórias, discursos, fofocas, etc, entram numa espécie de dança harmônica, um tipo de todo coordenado. O corpo, da mesma forma, quase sempre é mobilizado dessa maneira, ao ser um elemento colaborativo, pragmático. Pense em um suporte que participa na costura das palavras, pense em um recurso que reforça os alicerces da própria experiência, principalmente as histórias que giram em torno daquele pronome mais famoso, aquele que todos usam o tempo todo: o EU. Esse corpo, quase sempre participativo, por outro lado, sai do controle com facilidade, ganhando uma autonomia estranha, muitas vezes até ameaçadora. O objetivo desse ensaio, seguindo uma linha deleuziana, é justamente entender um pouco esse outro lado da corporeidade, esse excesso cotidiano que atravessa as experiências, muitas vezes até ameaçando seus contornos.


A respeito desse corpo diferente, desse excesso, precisamos de um nome adequado, de um guia, caso contrário corremos o risco de confundir as coisas. Em termos deleuzianos, esse pedaço estranho de matéria tem um nome, tem um rótulo: ele é o “corpo sem orgãos”. Sobre o outro corpo, aquele participativo, suporte, aquele que colabora na constituição da nossa própria experiência, vamos chamar de corpo fenomenológico. Embora distintas entre si, até mesmo contraditórias, essas duas dimensões refletem um certo fluxo de vida, sendo dois lados de uma mesma moeda.


O corpo fenomenológico, aquele participativo, brota dos encadeamentos cotidianos, do contato espontâneo e pragmático com o mundo. Se ocorre contradições, problemas, crises, etc, instancias como o signo e o corpo são mobilizados de um modo eficaz, ainda que não consciente. Nesse plano não reflexivo, esse corpo fenomenológico continua colaborando, ao menos enquanto intuição, remetendo a uma experiência mais fundamental, a uma experiência primeira. Em outras palavras, esse corpo jamais me envergonha, jamais ameaça aquilo que faço ou digo, já que apenas reforça as definições e redefinições que realizo em torno daquele pronome, o EU. Em resumo, esse corpo fenomenológico, participativo, é uma espécie de funcionário do EGO, de suas estruturas de funcionamento, de sua transcendentalidade, assim como a linguagem é, também, um suporte conveniente, adequado e, portanto, pragmático.


Já o corpo sem orgão, como é possível perceber, segue um rumo diferente, meio sombrio, ao resgatar sempre um excesso desagradável no interior do próprio mundo. Sua presenca, ao invés de colaborar com os contornos do EU, e da linguagem em torno de si, acaba transbordando, sendo muito mais uma ruptura, um trauma, uma falha. Esse Real, ou seja, essa dimensão excessiva, fora dos limites da própria conveniência cotidiana, e da própria representação, é definida em seus efeitos, em suas consequências. Ela não é um predicado definitivo, um rótulo claro, evidente, mas sim um impacto, uma consequência. O corpo sem orgãos, assim como o inconsciente freudiano, é definido a partir dos rastros que deixa na linguagem, nos pontos de tangencia que articula, ou seja, ele é sempre definido de um modo indireto e, principalmente, de um modo inesperado.


O corpo sem orgão, ao não ser um material suporte, participativo, acaba muitas vezes contradizendo as articulações convenientes do cotidiano, ou seja, acaba muitas vezes ameaçando as historias bem encadeadas que conto sobre mim e sobre mundo ao meu redor. Não importa o quanto lave, remende ou disfarce, o meu jaleco branco, enquanto um tecido de metáfora, sempre vai trazer manchas novas, muitas delas impossíveis de sair.


Sua presença é de tamanha intensidade, tamanho risco, que o corpo sem orgãos, meio que sem querer, acaba forçando um dualismo inexistente até então. Em termos fenomenológicos, não existe nenhum fosso que separe o corpo de outras realidades, como o EU ou a mente. Com o corpo sem orgãos, ao contrario, a coisa segue um outro rumo, muito mais complexo. Em seus instantes de radicalidade, essa carne, quando surge, quando explode, ameaçando assim as fronteiras do próprio o EU, força um dualismo não pretendido, comprometendo uma série de estruturas de conveniência, ou seja, estruturas que garantem um passeio confortável nos caminhos de Swann. Em outras palavras, o corpo sem orgãos não segue um ritmo pragmático, não é uma ferramenta prática, mas sim um acaso, um efeito, uma ruptura.


Sem dúvida, o corpo sem orgãos não é só angustia, medo, ruptura, da mesma maneira que Dionísio não é apenas o deus do excesso, do absurdo, mas também da criação, da novidade, do recomeço. Apesar dos problemas, das crises, afirmar essa esfera excessiva, traumática, assim como afirmar os contornos do próprio inconsciente, talvez seja também um ponto de recomeço, um instante repleto de novas possibilidades. Longe de ser algum resquício niilista, frio, resignado, o corpo sem orgãos carrega aquilo que o proprio Deleuze chamou de virtual, ou seja, carrega a chance infinita de novas criações, encontros e experiências.


Referência da imagem:


http://www.removermanchas.net/tirar-manchas-cafe-do-papel/

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