A intepretação da realidade contemporânea depende sempre de um olhar cuidadoso, de uma pesquisa bem direcionada e, principalmente, de categorias que acompanhem as flutuações históricas e suas novas contradições, certo? Errado!!! Para muitos, uma alternativa ao estudo cuidadoso, e a criatividade teórica, é a reciclagem de velhos rótulos, assim como de práticas ultrapassadas. Essa estratégia, ao longo do tempo, acabou criando um tipo de vácuo político, uma espécie de brecha gerada pela falta de alternativas. O medo e a insegurança tomam conta do cenário contemporâneo, agora parasitado por grupos de extrema direita que prosperam, e sempre prosperaram, em ambientes assim, instáveis. O objetivo nosso de hoje, nesse ensaio, é entender um pouco essa atmosfera da política atual.
De um modo bem irônico, as "categorias de reciclagem” são usadas de uma forma completamente ahistórica, sem materialidade, sem concretude, ou seja, sem cuidado. Termos como "facismo", não apenas no Brasil, mas também nos EUA, circulam por todas as esquinas, sendo um rótulo estampado em qualquer lugar, em qualquer um. Outro termo usado aos montes, aqui no país, é "golpe", numa tentativa de descrever o que aconteceu com o governo Temer. A esquerda, mais uma vez, mostra a sua preguiça intelectual, a sua resistência em criar novas categorias, novas formas de análise, ou seja, novas ferramentas teóricas e práticas. Essa preguiça, como era de se esperar, acabou saindo muito caro, muito mais do que imaginavam, e as eleições de 2018 vem aí cobrar a dívida.
É preciso, antes de seguir em frente, um esclarecimento básico, caso contrário teremos problemas no caminho. Primeiro: a situação contemporânea é assustadora, ninguém pode negar. Temer e Trump, por exemplo, são figuras desprezíveis, perigosas, personagens que implodem o próprio sentido de democracia, especialmente a liberal. Trump, com toda sua incompetência politica, deixa o mundo inteiro na beira de uma guerra nuclear. Já Temer, conseguiu o inacreditável, uma taxa de aprovação quase nula, reflexo de medidas precipitadas e uma tomada de poder traiçoeira. Isso não significa, por outro lado, que esses personagens sejam fascistas, ou tenham cometido algum golpe. É preciso categorias novas, adequadas, e isso por conta da circunstância politica contemporânea, jamais vista até então. Algumas vezes, termos como "lawfare" até aparecem no horizonte, mas são logo colocados em escanteio diante da enxurrada de “fascismos”, “golpes” e tantos outros rótulos convenientes.
Na tentativa de entender contradições da realidade, categorias novas precisam ser criadas, um olhar aprofundado precisa existir no meio de tanta conveniência, assim como fez Marx, na época, com seus estudos sobre economia politica. Seria conveniente, bem mais fácil, apenas resgatar o conceito de trabalho de John Locke, ou mesmo repetir a dialética hegeliana, sem qualquer acréscimo. Por que a necessidade de termos como materialismo histórico, modo de produção, etc? Por que não apenas reciclar figuras como Ricardo, Adam Smith e outros tantos pensadores? Marx sabia o quanto a sua própria linguagem precisava cair no tempo, o quanto precisava acompanhar as oscilações e os contornos do próprio mundo. Ele sabia da necessidade de uma linguagem única, nova, particular, uma linguagem que refletisse demandas concretas, contradições irredutíveis.
Sem dúvida, estratégias genéricas como a reciclagem, ao utilizar rótulos congelados, garantem uma análise confortável, sem riscos e, claro, sem os custos de uma investigação concreta e cuidadosa. A esquerda contemporânea perdeu energia, parou no tempo, recorrendo agora a uma atitude conveniente, ou seja, a reciclagem de práticas e teorias. Que o mundo passa por problemas, isso não é nenhuma novidade. Esses problemas, por outro lado, carregam contornos próprios, uma densidade única. Conceitos novos, saídos do forno, devem trazer dentro de si as flutuações históricas, as oscilações do próprio mundo, sendo reflexos de um momento particular e não pedaços congelados de um debate adormecido.
Diante dessa preguiça intelectual da esquerda, não é nenhuma novidade a emergência de movimentos conservadores, muitos de extrema direita. As pessoas reais, concretas, querem respostas disponíveis, querem alternativas que respondam ao que de novo acontece. O vácuo criativo da esquerda, portanto, acaba gerando a emergência de uma linguagem substituta, embora conservadora. É preciso respostas novas, discursos alternativos, formas diferentes e criativas de lidar com os problemas do mundo, caso contrário, o desgaste politico vai ser óbvio, como acontece hoje. Uma coisa é certa: As pessoas cansaram das opções de sempre, cansaram das mesmas ferramentas de luta e interpretação. Esse cansaço, como é de se esperar, é aproveitado por parasitas que prosperam em meio a medo e a insegurança. Cadê aquela energia da esquerda, aquele ânimo, aquela complexidade de raciocínio? Não podemos jogar o jogo simplista que os outros jogam, reduzindo o mundo de um modo conveniente, polarizado; não foi esse o ensinamento dos nossos pais fundadores.
ESQUERDA DO MUNDO, UNI-VOS, OU MELHOR, “RECRIAI-VOS”!!!!!
Referência da imagem:
http://www.fragmaq.com.br/blog/reciclagem-de-caixas-de-leite/