Imagem da coluna na praça Vendôme. Momumento erguido em 1806 utilizou o bronze de mil e duzentos canhões da Batalha de Austerlitz, vencida por Napoleão I.
Após um longo período afastado do portal, em que diversos contratempos me mantiveram afastado, eis que ressurjo do afogamento momentâneo nas águas bravias do dever não só com fôlego renovado para esse ano, como ainda preocupado com nuvens escuras que pairam sobre a nossa república, as quais, infelizmente, não se dissiparam com o reinício do calendário.
Os casos frequentes de desrespeito ao arcabouço jurídico que circunscreve e ordena as sociedades assentadas no direito, como a deliberada desatenção aos princípios constitucionais, se tornaram um lugar comum neste país. Bem, não bancarei aqui o ingênuo: os direitos civis são violados diariamente e atingem essencialmente a camada pobre e de origem negra. Segundo a Conectas, quase 41% das pessoas que estão privadas de liberdade no país são presos provisórios. Preciso aqui dizer qual é a origem social e cor de pele da maioria dessas pessoas?
Pois bem, esse assunto merece um tratamento à parte e pretendo retornar a ele, aguardem. Desta vez, o assunto que quero tratar é da subjugação do direito ao moralismo do combate à corrupção que atingiu ao andar de cima. E o assunto é preocupante quando se tem em mente que esse moralismo está esterilizando o único modo legítimo de transformação social, que é a política.
Há quase 200 anos, Alexis de Tocqueville publicou uma das maiores obras da era moderna: A Democracia na América[1]. Trata-se basicamente de considerações feitas sobre a organização sociopolítica dos Estados Unidos, a partir da formação do território, leis e costumes (desde já recomendo a leitura desse clássico do pensamento político). Entre as muitas observações e conclusões feitas pelo francês em terras norte-americanas, ele concluiu que enquanto o ordenamento jurídico e político do país caminhava em direção da salvaguarda da liberdade individual, no campo social era a moral de origem religiosa – especificamente puritana – que estruturava a vida dos cidadãos ianques.
Basicamente, Tocqueville observou que um dos triunfos daquela nova sociedade que emergia para o mundo era justamente a separação entre a moral e o mundo jurídico. A salvaguarda do indivíduo contra qualquer tipo de tirania estaria corporificada no judiciário, órgão composto de magistrados que, justamente por não terem filiação com a escolha popular, poderiam aplicar e garantir que os preceitos fundamentais fossem mantidos. Embora não seja filiado à corrente de pensamento social que, para explicar nossas diferenças da “civilização ocidental”, aponta para a nossa “falta” (de liberalismo, organização social, capitalismo...), me parece que de uns tempos para cá, um determinado tipo de moralismo resolveu, não apenas coabitar com o direito, mas predar e substituir o mesmo, se arvorando como nova maneira de se fazer justiça. A justificativa é tentadora: diante de uma classe política que historicamente mantém a corrupção como modus operandi, impedindo assim que o “povo” tenha seus direitos garantidos, é preciso que haja uma reação contra “tudo o que está aí” e que ponha fim nesse na suposta “cleptocracia” que se apossa do Brasil desde a sua fundação.
- Mas e se isso significar ignorar princípios do processo legal? Não tem problema!
- E vale passar por cima da dignidade do indivíduo? Que nada, bandido merece esculacho!
- E a Constituição, como fica? Ah, isso é papo de legalista! Está com pena? Leva o corrupto para casa!
Como bem salientou o sociólogo Luiz Werneck Vianna, está em curso uma “revolução dos santos”: homens e mulheres que, imbuídos de um imperativo moral de passar país a limpo, empreendem uma cruzada contra o mundo da política, vetor de todos os males. Antes que o primeiro desavisado sequer cogite aqui uma defesa da corrupção, deixo claro: há muito o que se comemorar com a Operação Lava Jato e suas crias. Como em poucas vezes, se desnudou a relação perniciosa entre poder político e poder econômico. No entanto, ainda que não goste de clichês, não se pode jogar a água suja com o bebê dentro. E nesse caso, a criança é o regime democrático que a Carta de 1988 nos legou, que mais do que o voto, assegurou garantias fundamentais para a defesa do cidadão e a preservação de sua dignidade.
Os ataques começaram com as conduções coercitivas, prisões preventivas e provisórias de empresários e burocratas. A maioria, extasiada com o espetáculo, aplaudia os rituais de purificação empreendido pelos “santos”. Quase todas com um requinte de demonstração de força e crueldade, que não fazem feio aos regimes autoritários que abundaram nos últimos 50 anos. Afinal, as operações pirotécnicas da PF, raspar o cabelo e acorrentar presos são demonstrações de que? Em uma escalada sinistra, a força-tarefa da Lava Jato com a “mãozinha” do TRF-4 chegou ao topo da cadeia alimentar da classe política com o aumento da condenação do ex-presidente Lula. Pouco a pouco, assim como Napoleão I construiu, para sua própria homenagem, a Coluna de Vendôme com os canhões dos vencidos em batalha, o moralismo lavajatista ergue seu próprio monumento com a matéria-prima fornecida pelos políticos e empresários presos nas operações.
A profanação do direito pela “moral puritana” encontra eco por todos os cantos, inclusive no silêncio eloquente de muitos juristas país afora. A denúncia do MPF (de recebimento de propina por contratos firmados) não é a base da condenação do juiz Sérgio Moro, que nem levando em consideração o conteúdo (não provado) pelo MPF, como consta no indeferimento dos embargos de declaração feitos pela defesa. E eu nem vou relembrar dos episódios dantescos em que Lula era obrigado a comprovar que não havia cometido crime algum. Nesse novo direito 2.0, o ônus da prova não é de quem acusa, mas sim do réu. Não sou da área jurídica, porém entendo um pouco de lógica e graças a Deus, fui alfabetizado. Para os que gostam ou não do petista, sugiro que tomem como base de crítica os autos do processo. A denúncia está aqui, a condenação aqui e a rejeição dos embargos de declaração aqui.
Não se trata aqui de dizer se o ex-presidente é culpado ou inocente; a meu ver, é algo muito maior que está em jogo e não, não me refiro à volta dele ao poder, aliás, quase que certa, ao julgar pelas últimas pesquisas. O que realmente está em jogo é o legado civilizatório do direito como ordenamento da sociedade, sem o embargo da vontade moral de quem julga, dentro ou fora dos tribunais. Ainda que se critique esta ou aquela decisão, a luta é justamente para que o arbítrio e o voluntarismo não prevaleçam, esteja ele ou não coberto das vestes da boa intenção. Ignorar esse primado é regredir para ao vale tudo.
Os “santos” da Lava-Jato, em cada atropelo ao direito com o interesse de refundar a vida política, sussurram a constatação de Walter Benjamin: todo monumento da cultura (entenda-se também por civilização) é também um monumento da barbárie. E é nesse altar da moralidade que se está sacrificando um legado que tantos brasileiros lutaram, como o próprio Lula, para conquistar: as liberdades democráticas. Quase 2000 anos depois, a pergunta do poeta romano Juvenal não se faz calar:
“Sempre ouço o conselho dos meus amigos: algeme-a, constranja-a! Mas quem guardará os guardiões?”
Perguntar não ofende.
[1] O primeiro volume foi publicado em 1835 e o segundo, em 1840.