A realidade é sempre rica, intensa, um tipo de liquido que transborda e resiste a qualquer esforço de contenção. Apesar desse caráter transbordante, e até mesmo radical, isso nunca impediu os dedos pretensiosos, aqueles que gostam de impor limite, de criar fronteiras, aqueles que descobriram a fórmula de como o universo inteiro funciona. Esses “dedos científicos” passeiam por aí, em toda parte, apenas aguardando o momento certo de esclarecer as consciências, ao tirar todos da caverna escura chamada ignorância.
Fazer ciência, no sentido clássico, nada mais é do que construir muros, deixando claro o limite entre o dentro e o fora, a natureza e a cultura, o verdadeiro e o falso. Além disso, é preciso classificar, é preciso um rótulo, já que a complexidade nunca é bem vinda, sendo sempre perigosa, um risco. As ciências sociais nasceram nesse espirito iluminista, nesse elogio da razão, da capacidade humana de encontrar respostas, causas, finalidades, além de toda uma série de tesouros escondidos nas profundezas do mundo. O cientista, infelizmente, sempre se afasta desse mesmo mundo quando resolve definir fronteiras, estabelecer rótulos e criar definições, mas um romancista, como Dostoiévski, não é bem assim, ao contrário. Esse é o nosso objetivo de hoje, nessas linhas: entender esse literato não apenas como um possível sociólogo, mas como talvez o mais importante de todos eles.
A arte, ao menos enquanto linguagem, consegue captar o mundo de um jeito bem especial, sem pretensões, sem a mania por correspondência ou conceitos congelados. Uma grande obra é definida pela forma como é feita, pela riqueza que sugere em suas palavras, em suas pincelas, ou nas notas musicais numa partitura, ou seja, o critério é o mergulho no próprio mundo, ao seguir seus fluxos, seus contornos, sua autonomia. Já aquele critério do cientista, o de validade, o que separa verdadeiro do falso, ao menos aqui, não faz sentido algum, não acrescenta nada, não cria nada. Dostoiévski, seguindo um ritmo próprio, intenso, oferece um retrato vivo da realidade, e da vida humana em geral, retrato esse muito mais rico, complexo, e dinâmico que qualquer outro jamais feito no campo sociológico.
“O que isso significa?” Pergunta o amador ao ler pela primeira vez o “Duplo” de Dostoiévski. Essa pergunta é inaceitável, sem sentido, já que não resgata a vivencia, o mundo. Ninguém sai por aí interpretando as coisas, transformando tudo em um objeto de investigação, ao contrário. A parcela critica é um mínimo, um pequeno instante, sendo mergulhada em grandiosas porções de envolvimento espontâneo com coisas, pessoas e circunstâncias. Na vida, no universo cotidiano, estamos sempre dissolvidos na experiência, apenas vivendo, rindo, chorando, sofrendo, conversando, e nada mais. Em Dostoiévski, essa parcela fenomenológica é resgatada, sendo por isso um retrato mais fiel do mundo, um resgate puramente concreto, material, sem idealidades ou “interpretações de bolso”.
A influência de Dostoiévski na filosofia, especialmente nos seus desdobramentos nietzschianos, é muito conhecida. Antes do método genealógico ser conceitualizado, antes de ganhar corpo no Crepúsculo dos ídolos, ele já passeava pelos monólogos da novela “Memorias do Subsolo”, já deixava sua marca. Quem é o protagonista dessa história? Um vilão, um herói? Ele é culpado ou inocente? Ele é a verdade ou a mentira? A escrita genealógica de Dostoiévski implode a linguagem, assim como todas as suas categorias convenientes, quebrando todo seu arranjo pragmático. No final do percurso, do trajeto genealógico, não se tem uma certeza, ou alguma representação, mas apenas o resgate de um campo de possibilidades, de uma riqueza perdida, ou melhor, reprimida.
Em recordação da casa dos mortos, a genealogia aparece mais uma vez, mas não como tema, e sim como a própria forma de escrita, o próprio modo como as palavras são costuradas. Os bastidores daquela prisão, bem familiar a Dostoiévski, foi descrita do modo mais crú, mais complexo, sem recorrer a nenhum dualismo conveniente, a nenhum artifício de linguagem, nem mesmo uma justificação previsível. A realidade que brota, aquela que aparece entrelinhas, escapa a qualquer gesto interpretativo, a qualquer esforço de nomeação, ao evitar a busca por um culpado, um inimigo, ou mesmo um herói. “Um assassino e um excelente pai de família?” “Um ladrão extremamente religioso?” Cenas assim bagunçam nossa cabeça, embaralham categorias, embora retratem o mundo de uma forma mais fiel, ou seja, de uma forma mais complexa e intensa.
A influência da escrita dostoievskiana na psicanálise, da mesma maneira, é muito conhecida. Quem não lembra as reflexões de Alexei nos irmãos Karamazov, do seu modo único de encadear ideias, de usar a linguagem? Suas palavras, quase sempre, falhavam, implodiam, quebrando assim toda a conveniência e a linearidade. Ele era um santo, mas nem sempre, era caridoso, embora também egoísta, era crente, apesar dos instantes de ateísmo. E Raskólnikov, em Crime e Castigo, quem não lembra da sua crise existencial constante, além da sua incapacidade em sustentar uma confortável justificativa? Como não reconhecer, nesses personagens clássicos, o germe daquilo que mais tarde chamariam de associação livre, a regra fundamental da psicanálise?
E na sociologia, qual papel Dostoiévski desempenha, o que ele contribui em nossa investigação sociológica? A resposta é obvia: jamais existiu um olhar sobre a sociedade mais denso, mais rico, mais fiel. Todos os demais clássicos, com aquele espirito bem iluminista, buscavam apenas respostas, sejam elas direcionadas ao mundo, como Durkheim ou Marx, ou mesmo a respeito de nossas categorias de compreensão, como em Weber. De qualquer forma, o objetivo da linguagem cientifica é nomear, circunscrever, definir... limitar!!! A sociedade que aparece nos textos sociológicos é apenas uma sombra, um borrão, nada mais. Nada tem de legitima, de real, sendo apenas um movimento apressado, um desenho feito por mãos ansiosas. Dostoiévski, ao contrário, captou o que precisava ser captado, conseguiu resgatar aquilo que existe de mais humano no humano, ou seja, sua imprevisibilidade, sua ambivalência, sua riqueza.
O retrato de mundo sugerido por esse “sociólogo russo”, assim como aquele de Dorian Gray, não comporta mentiras, simplificações, ou conveniências. Não foi construído com o propósito de agradar alguém, ou talvez confortar alguma consciência conservadora ou ate revolucionária. Dostoiévski descreve o indescritível, ao trazer a riqueza do que existe, sem pretensões, sem artifícios. Comparar as passagens desse escritor russo com aquelas dos clássicos da sociologia, nossos “três porquinhos”, é tão absurdo quanto comparar um oceano a um rio, uma montanha a um morro, uma tempestade a uma garoa.
O olhar sociológico, clássico, pretensioso, quer respostas, e nada mais. A teoria sociológica sempre reduziu o alcance das coisas, sempre simplificou um mundo cheio de sentido, seja no recorte ontológico marxiano, no positivismo de Durkheim, ou mesmo na epistemologia em Weber. Existe sempre uma verdade sobre o mundo ou sobre o sujeito que conhece, um tipo de saber necessário e disponível, ao menos para figuras esclarecidas. Felizmente Dostoiévski não segue esse rumo iluminista, não pretende reduzir, mas ampliar, não busca respostas, mas perguntas, não quer uma causa, um proposito, ou ate mesmo um culpado. Sua linguagem ultrapassa a fronteira dessas conveniências, desse pragmatismo superficial, dessa mania em distorcer o mundo.
A busca por causas, culpados, finalidades, e tantos outros artifícios de linguagem, apesar de toda conveniência existente, acabam, a longo prazo, distorcendo o que existe no mundo, reprimindo o seu virtual, suas alternativas, seus trajetos. Coisas como “sociedade”, “mente”, “Corpo” e “sentido” nunca foram conceitos em Dostoiévski, mas pedaços da própria experiência, porções de realidade resgatadas do mundo. Se é o mundo que quero, se ele é o objetivo final, a solução não é empilhar camadas de teoria sobre o que acontece, mas trazer á tona a vivencia, o modo como efetivamente a realidade se desdobra.
Referência da Imagem:
http://filoescola.blogspot.com.br/2011/03/dostoievski-e-o-homem-do-subsolo.html