Guillermo del Toro não é, de forma nenhuma, um diretor romântico, mesmo trabalhando obras como “o labirinto do fauno” (2006), o que poderia sugerir alguma coisa mais onírica, ou suave, ao menos quando se ouve o título. Até mesmo filmes mais populares, como “Hellboy” (2004), continuam carregando os traços de um diretor original e imprevisível. O seu estilo lembra muito o de Tim Burton, alguém poderia dizer por aí, especialmente depois de ter assistido o seu “Colina Escarlate” (2015). Essa comparação faz sentido? Sim, até certo ponto, embora del Toro seja, sem dúvida, muito mais profundo, mais maduro, não apresentando apenas um estilo sombrio esvaziado, de puro entretenimento. Em del Toro, ao contrário de Burton, o grotesco tem um propósito no interior da trama, assim como sua própria fotografia impactante, não sendo apenas um traço vaidoso de um diretor. Esse é o nosso objetivo de hoje, nessas linhas: entender os contornos desse grande cineasta, além de mergulhar um pouco no seu mais novo trabalho.
Guillermo del Toro é o diretor dos detalhes, justamente daquilo que não aparece no primeiro plano, ou mesmo nos diálogos mais superficiais. O seu método de construção do enredo, o modo como decompõe as cenas e encadeia seus elementos, é basicamente genealógico, ao buscar sempre as linhas de fuga, os excessos, fugindo da centralidade de uma interpretação previsível. Esse excesso, ao menos em seu mais novo filme, é o desejo.
“A forma da água”, com suas 13 indicações ao Oscar, continua trazendo a marca do seu diretor, especialmente seus excessos escondidos por trás de uma imagem suave, romântica, ou mesmo infantil. Essa estratégia, não apenas literária, mas retórica, lembra o uso da baleia branca em Moby Dick de Melville. O branco da baleia contrasta com seu potencial assassino, a sua sede por destruição. O fundo aparentemente puro, suave, faz do animal algo muito mais grotesco, perigoso. Na “forma da água”, da mesma maneira, del Toro continua na trilha dessa estratégia clássica, o que não é nenhuma surpresa. Uma linguagem encadeada é sugerida, embora algumas gotas de intensidade sejam derramadas ao longo do enredo, fazendo com que a experiência se torne muito mais impactante.
O núcleo da sua linguagem, aquilo que organiza o próprio fluxo do seu pensamento, deve ser buscado nas entrelinhas, nos bastidores, e não no que existe de aparente. No labirinto do fauno, por exemplo, o que aparece na superfície é apenas uma historia fantástica como outra qualquer, cheia de magia e aventura. Apesar dessa atmosfera onírica, as cenas são pinceladas com elementos grotescos, estranhos, sombrios, criando um contraste curioso e bem característico. A fotografia, com traços desbotados, com suas cores frias, além da música dramática, seguem o mesmo rumo, contrastando tudo ao redor. Quase como num romance de Zola, a corrosão dos personagens e cenários é proporcional à expectativa criada no inicio da história. Quanto mais expectativa, mais terrível são certas revelações. A inocência da personagem principal, uma jovem chamada Ofélia, realça mais ainda a estranheza do fauno e do seu labirinto. Inocência e monstruosidade acabam sendo dois lados de uma mesma moeda, cada uma complementando o todo fílmico, a propria percepção cinematográfica.
“A forma da água” é uma obra romântica? Sim, é. “O labirinto do fauno” é um conto de fada? Sim, também. Mas tudo isso é apenas pretexto, um ponto de partida dentro de um olhar mais radical. O fundo romântico, ou o fundo fantástico do “labirinto do fauno”, assim como o fundo branco da baleia em Moby Dick, são apenas coadjuvantes, sendo que o protagonista repousa justamente naquilo que Espinoza chamou de encontro, ou seja, os instantes de acaso, de ruptura, de contraste. Na “forma da água”, Eliza, a protagonista da história, é uma viciada em masturbação, o que já é algo bem revelador, mas isso não é tudo. Seu lugar preferido, aquele mais intimo, é a banheira. Entendeu? Banheira, ÁGUA!!! O filme é atravessado por instantes como esse, instantes que criam uma espécie de contraste com o romantismo de fundo, um jogo entre luz e sombra bem típica de del Toro. O romantismo, a longo prazo, é substituído por um fetiche com a água, uma perversão. Como assim um fetiche com a água?- Pergunta, assustado, o espectador romântico. O desejo é uma substância sem forma e sem destino, sem objeto definido. Ele pode assumir vários contornos, dependendo do corpo que o recepciona. Assim como o desejo pode ser direcionado para o cabelo, os pés, ou até mesmo os sapatos de uma mulher, a água também pode facilmente entrar nesse hall de excentricidades.
Um olhar rapido, e um pouco despreocupado, sobre o filme acaba concentrando a atenção no romantismo de fundo presente no enredo, no vínculo entre a protagonista e o monstro, seus momentos de estranheza, de timidez, de proximidade, etc. Saindo um pouco do óbvio, o que existe muito mais é um triangulo amoroso entre os dois e a ÁGUA. A água não é apenas o meio em que a criatura circula, mas a própria condição do “amor”, ou melhor, do desejo. Esse desejo tem como objeto, portanto, a água, e não o monstro. Ele nada mais é do que um acaso, um acidente, um coadjuvante. Por mais absurdo que pareça, e o desejo é sempre absurdo, o suposto romantismo é apenas um prolongamento das cenas na banheira, uma extensão de uma prática masturbatória, sendo, no fundo, egoísta. A criatura nada mais é do que um objeto, um instante mínimo dentro de um jogo desejante. Enxergar apenas um rastro romântico nesse filme de del Toro, o que muitos fizeram, é não conhecer bem o estilo do diretor, o seu modo único de costurar a linguagem e brincar com seus elementos.
O filme não é genial por ser apenas mais uma história de romance dentre milhares feitas até hoje em Hollywood. Se fosse isso, apenas isso, o filme não receberia sequer uma indicação. Se existem 13 dessas indicações, circunstância inclusive rara, é porque algo mais existe, algo para além do cliché previsível de um casal mal compreendido, separado por mundos diferentes, mas que acabam bem no desfecho. Essa história todos conhecem, faz parte do nosso imaginário coletivo, presente não apenas em filmes, novelas, mas até em desenhos infantis. Del Toro captura o tradicional, o comum, sem dúvida, mas sempre adicionando algo além, sempre subvertendo a compreensão das coisas, quebrando as expectativas.
“A forma da água” é rótulado como mais um romance previsível, na esteira de tantos outros, embora não tenha sido essa a razão das suas 13 indicações, inclusive como melhor filme. O público e a crítica amaram a história, aplaudiram de pé, mas por razões não apenas diferentes, mas até contraditórias entre si. O primeiro, o público, projetou no filme as expectativas de sempre, resgatando dele uma estrutura romântica clássica. O segundo, a crítica, em sua maior parte, conseguiu captar o excesso da obra, justamente por reconhecer a trilha deixada pelo seu diretor, Guillermo del Toro. Apesar de tudo, é um filme incrível, muito bem costurado, cheio de sutilezas, seja na sua trilha sonora bem retrô, ou mesmo na sua fotografia bem feita, além, claro, das excelentes perfomances de Sally Hawkins (Eliza), Doug Jones (O monstro), Michael Shanno (Strickland) e Octavia Spencer (Zelda).
AVALIAÇÃO FINAL: 9,0/10 (SUPER RECOMENDADO)
Referência de imagem:
http://www.vermelho.org.br/noticia/305487-1