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TODO SOCIÓLOGO É COMPLETAMENTE LOUCO: Machado de Assis e o Kafka brasileiro

Foto do escritor: Thiago Araujo PinhoThiago Araujo Pinho

O projeto iluminista, enquanto atmosfera cultural e filosófica do século XVIII, encabeçado por grandes figuras como Kant, Voltaire, Diderot e tantos outros, trouxe, sem dúvida, um certo otimismo de fundo, uma crença no progresso e na ciência, além de uma aposta na razão e seus milagres. Esse projeto, por outro lado, também deixou algumas marcas dolorosas em nossa linguagem, não apenas naquela cientifica, mas no próprio cotidiano, em nosso dia-a-dia. O dualismo é um exemplo dessa cicatriz, desse tipo de mancha ainda persistente, não importa para onde se olhe. Sujeito-objeto, natureza-cultura, corpo-mente, e tantos outros casos de dualismo perdidos por aí, sendo que um deles, em particular, é o nosso grande protagonista de hoje, nessas linhas: A FRONTEIRA ENTRE LOUCURA E RAZÃO.


A loucura, dentro do projeto iluminista, jamais seria confundida com a razão, assim como um farol não é equivalente a uma neblina. Não importa a metáfora usada, o importante é marcar a fronteira, de preferência reconduzindo aqueles sem rumo, os que foram recusados pela sanidade. No início da psicanálise, no começo do século XX, existia ainda um pouco daquele projeto iluminista, assim como a imagem da razão como um farol, como um projetor capaz de “lançar luz no inconsciente”, como Freud gostava de dizer. Apesar dessa metáfora ser interessante, será mesmo tão simples assim? Será que a razão é mesmo o oposto da loucura, como muitos querem acreditar? Não seriam, talvez, duas grandes parceiras ou, indo mais além, não seriam o mesmo fenômeno? Machado de Assis conseguiu captar esse traço kafkiano da vida, antes mesmo do próprio Kafka, ao mergulhar nas profundezas da linguagem, sem medo de invadir os limites do irracional.


Em uma pequena cidade do interior, chamada Itaguaí, lugar aconchegante e bem arrumado, pessoas comuns passeiam pela calçada, pessoas do cotidiano, como eu e você, com exceção de uma, um tal médico recém chegado de Portugal. Bacamarte é um personagem curioso, uma figura comprometida com a razão e todos os seus procedimentos e métodos, mesmo na sua vida privada com sua mulher, D. Evarista. Tudo é rigorosamente avaliado, não apenas as finanças da família, mas também os afetos que circulavam pelos corredores, além dos elogios, dos abraços, dos beijos. Nada o desvia do caminho da verdade e da pureza de raciocínio, nada bagunça ou incomoda a fluidez dos seus pensamentos. Ele era um “homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência”, diria Machado de Assis. Carregado dessa firmeza cientifica, constrói a tão conhecida Casa Verde, um tipo de hospício no melhor canto da cidade.


Segundo Bacamarte, “a loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”. Por esse motivo, mais do que qualquer outro, é preciso domesticar o irracional, o estranho, o louco, mas sempre com um método adequado, através de uma razão clara, transparente, sem nenhuma interferência externa. Através de novos critérios, e novas categorias, Bacamarte começa a entender melhor as coisas, ao colocar cada traço de comportamento em seu devido lugar, não deixando espaço para o desconhecido. Como consequência, mais e mais loucos começam a fazer parte da Casa Verde, aumentando em um ritmo assombroso, até que não sobra ninguém na cidade, a não ser o próprio Bacamarte. Todos foram enquadrados em algum critério, em alguma categoria, não importa o individuo, a classe social, religião ou cor de pele. Todos foram capturados pela ciência e sua metodologia democrática.


Provavelmente você já deve ter escutado o adjetivo “kafkiano”, talvez atribuído a uma pessoa, a uma circunstância, a um livro, filme, etc. Essa palavra diz respeito ao modo como a realidade e a linguagem se comportam, ao menos quando chegam no limite. O melhor exemplo, sem dúvida, é o próprio livro “O Alienista” de Machado de Assis. Da mesma forma que no romance o Processo, um dos mais famosos de Kafka, o racional se converte em irracionalidade, o coerente em incoerência e a estrutura, de repente, torna-se caos. Nesses dois romances, a razão nada mais é do que a outra face da loucura, muitas vezes até se confundindo, sendo o mesmo fenômeno. Na aparência, os dois lados parecem opostos, inconfundíveis, mas quando a linguagem é colocada no limite, assim como a própria razão, é possível perceber que os dualismos não existem.


O desfecho do Alienista é trágico, quase irônico, como se fosse uma peça de Sófocles. O personagem principal percebe o próprio abandono, um completo isolamento, assim como seu mergulho na loucura. Tudo isso lembra muito o desfecho do Processo: “Morto como um cão”, diz K., no final da história, ao perceber o destino de toda aquela racionalidade. Para esses dois grandes personagens da literatura universal, a loucura jamais foi um traço estranho, externo; jamais foi um estrangeiro, uma crise, ou um caos, ao contrário. A loucura faz parte da experiência, sempre, principalmente naquele tipo de experiencia mais racional, metodológica, formalizante. O louco e o cientista fazem parte de um mesmo universo, compartilham de um mesmo solo, sendo até a mesma pessoa. A expressão “cientista louco”, nesse sentido, é uma redundância, uma tautologia, já que cientista é, em essência, sempre louco, em especial aqueles mais metodológicos, aqueles mais formais, aqueles preocupados com critérios, categorias e conceitos.


Referência da Imagem:


https://homemcr.org/film/the-shining/

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