O acaso, o estranho, o trauma, fazem parte da vida, da experiência, ainda que não seja nossa intenção, ainda que todos os esforços sejam contrários a tudo isso. Mesmo desejando a alegria, a tristeza aparece sem querer. Mesmo desejando o amor, ainda sim o ódio surge, de repente. Mesmo desejando uma simples conversa, o embaraço brota das palavras, manchando tudo ao redor. O mundo concreto, aquele cotidiano, não é o nosso berço, como diria Freud, não é uma simples extensão do meu querer, ou um poço de expectativas, justamente porque esse mesmo mundo tem vida própria, é complexo, intenso, transbordando toda fronteira conveniente, todo critério confortável. Nas redes sociais, como o Facebook, a coisa muda de configuração, ao oferecer um espaço inédito, conveniente, sem riscos, um tipo de espaço perfeito ao metafísico, aquela figura que detesta surpresas, acasos e contingências.
Com o Facebook, e seu algoritmo, temos agora um paraíso ao redor, um espaço com informações selecionadas, cheio de conveniência, sempre reforçando minhas escolhas, meus critérios e minha própria narrativa. O Facebook é nossa metafísica contemporânea, o sonho do “último homem”, diria Nietzsche, o sonho daquele sujeito em busca de um ponto confortável, sem risco, medo, ou crise. Ao contrário do meu cotidiano, sempre imprevisível, no Facebook eu sei exatamente o que me espera, sem muita surpresa, muito menos acaso. Mesmo quando algo me indigna, mesmo quando desperta em mim alguma raiva, tudo isso continua dentro da expectativa, continua dentro de uma estrutura conveniente. Tudo é feito para reforçar o meu ego, alimentando cada carência, ou melhor, cada conveniência. Com o Facebook, a minha narrativa pode descansar sossegada, pode ter a certeza de que nada vai sair do trilho, jamais.
Claro que o algoritmo não é algo exclusivo de computadores, mas também uma ferramenta de linguagem clássica, sendo um recurso usado, desde sempre, pela prática humana, ao menos enquanto princípio. O filtro de informações, a tendência em participar de grupos convenientes, incorporando notícias também convenientes, não é nada de novo. Por outro lado, apesar dessa forma algorítmica ser uma constante na linguagem humana, quase uma inclinação meio que natural, o cotidiano sempre conseguiu frustrar essa mesma estrutura, sempre conseguiu ir além, transbordando suas fronteiras. No Facebook, ao contrário, esse excesso de vida não mais existe, nem mesmo a probabilidade de um acaso, de uma surpresa, de uma mudança de opinião, ou seja, não existe chance, nem mesmo remota, daquilo que Espinoza chamou de encontro.
Aquilo que parece um espaço descentrado, com bilhões de pessoas interagindo simultaneamente, é muito mais um céu azul repleto de bolhas, repleto de espaços convenientes, assépticos, ou seja, universos autônomos navegando sem rumo. Com as redes sociais, a linguagem se tornou um campo rígido de oposições, com grupos autosuficientes e cheios de ideias a compartilhar, não importa o conteúdo. Se no mundo concreto, na vida cotidiana, era ainda possível sugerir pontos de cruzamento, talvez pela convivência repleta de surpresas, acasos e possibilidades, com o Facebook, ao contrário, esses grupos podem sossegar em um ambiente asséptico, regulado, sem risco, sem medo, sem surpresa. Minhas ideias podem descansar sossegadas, já que tudo segue uma estrutura conveniente, uma forma perfeita. O sonho de um espaço sem riscos, sem caos, sem crise, é o que sempre mobilizou a figura do metafísico, daquele sujeito inclinado a negar a vida, o corpo e as contigências em nome de uma ilusão.
O Facebook realizou o sonho do metafísico, diria Nietzsche, ou do neurótico, diria Freud. Com sua estrutura algorítmica, toda conveniente, eu posso construir, enfim, o mundo dos sonhos, sem correr o risco da frustração, da crise, do caos. O mundo se tornou, finalmente, um prolongamento do meu querer, das minhas escolhas, dos meus critérios, do meu “EU”. No meu feed de notícias, ao longo de toda a minha página, sou bombardeado por sorrisos, por boas intenções, por encontros agradáveis no domingo a tarde, etc. Nesse mesmo feed de noticias, eu tenho, e eu sou, aquilo que eu sempre quis, um "Eu" coerente, bem ordenado e com uma narrativa bem construída.
Um mundo sem risco é algo bem atraente, sem dúvida. Quem nunca desejou algo assim? O problema é o efeito colateral de tudo isso, como sugeriu Nietzsche em seu crepúsculo dos ídolos. Um mundo perfeito, sem o encontro espinozano, é um mundo sem criatividade, sem mudança, sem diálogo, sem alternativas, a não ser um movimento circular e agressivo. A onda de ódio que atravessa as redes sociais, como Facebook, por exemplo, não é nenhuma surpresa. Claro que a vida cotidiana é repleta também desse ódio, com grupos em oposição, confitos, etc, mas existe sempre a possibilidade, ainda que remota, do acaso brotar no horizonte, afetando indivíduos concretos. No cotidiano, um comentário inesperado, uma atitude inesperada, pode mudar tudo, toda a estrutura de uma narrativa, toda a fronteira do meu "Eu". No Facebook, ao contrário, isso é impossível, já que finalmente conseguimos realizar o sonho da perfeição, o sonho de um mundo feito a minha imagem e semelhança, um mundo feito apenas para mim, sendo aquele lá fora, o concreto, apenas um poço cheio de perigos, cheio de surpresas, cheio de frustrações.
Em troca do nosso paraíso metafísico, abrimos mão da possibilidade de criar. Abrimos mão também do encontro, da conversa. Só existe dialogo na crise, na incerteza, na insegurança, caso contrário só existem monólogos, como os que acontecem hoje em dia em nossas redes sociais. Talvez, agora, mais do que nunca, precisamos torcer pelo acaso, pela ruptura, ou seja, pelo encontro espinozano.
Referência da Imagem:
http://topimnews.wealthmagnate.com/how-facebook-affects-you/