Por Ronaldo Magalhães*
O que passarei a narrar ocorreu em 2015. Eu estava dentro de um ônibus coletivo quando me deparei com uma cena muito deplorável. Um grupo composto por três rapazes muito jovens estava conversando animadamente. Algo natural até então. Percebia-se que eram universitários e que haviam ingressado no nível superior recentemente. Como eu estava próximo deles, mesmo que eu não quisesse, não tinha como não escutar sobre o que eles estavam falando.
Fiquei chocado com as coisas que eu ouvi. O papo versava sobre alguma colega de um deles que fazia faculdade de dança e comentou sobre uma matéria que ela estava fazendo: “A dança como manifestação social”. Eles simplesmente faziam chacota com o curso. Diziam não entender como é que se tem um curso universitário para dança. – Como será um seminário de dança? Disse um deles. Ao tempo em que o outro respondeu: – Ah, “man”, a pessoa entra, olha para frente, se mexe e pronto: tem uma nota. E nisso todos gargalhavam. E não parou por aí. Foram tecendo comentários sobre outras artes também. Teve um que ainda defendeu a música. Ele disse que achava importante. E o outro também falou que, talvez, o teatro tivesse alguma coisa interessante. E os jovens continuaram com os seus impropérios absurdos repletos de preconceitos e afirmações levianas. Eu fiquei muito chateado com aquilo tudo. Tive vontade de interromper, defender a arte e tal, mas em tempos tão conturbados, o mais sensato é o silêncio em muitos momentos. Esse acontecimento ocorrido em 2015, mas que infelizmente continua atual, me fez refletir sobre a questão da formação educacional brasileira, sobretudo sobre o ensino de artes nas escolas.
No dia 3 de maio de 2016, o teatro, as artes visuais e a dança foram incorporados ao currículo do ensino básico brasileiro. Até então, apenas a música era componente “obrigatório, mas não exclusivo” do ensino de arte na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. À época, as escolas teriam que se adequar num prazo de cinco anos. Mas, no dia 22 de setembro de 2016, um conjunto de novas diretrizes foram implementadas, via medida provisória, pelo governo federal para reforma do ensino médio. Entre as medidas, não seria mais obrigatório o ensino de filosofia, sociologia e artes.
Como poderemos evoluir em um país que não leva a educação e a arte a sério? Que põe a Arte à margem e reforça o discurso de apenas considerá-la como recreação, hora de brincadeira e de relaxamento? Como reagir diante da reforma do ensino médio que foi aprovada recentemente e fragmenta a formação ao flexibilizar o currículo e justificar que o estudante poderá escolher o direcionamento de seus estudos? E o que dizer da não obrigatoriedade do ensino de artes? Mais do que nunca, precisamos nos mobilizar para exigir que as artes passem a ser disciplinas fixas e que aja uma interdisciplinaridade com as outras matérias.
Por que será que existe uma resistência por parte dos poderes públicos em instituir a Arte como expressão de conhecimento tão imprescindível quanto Português, Matemática ou História? Infelizmente não há interesse por parte dos governantes em promover uma formação educacional completa e decente para o povo brasileiro, pois em sua maioria o que imperam são interesses pessoais; o que importa são índices numéricos; é reduzir verbas para a educação, quando não desviam descaradamente os recursos numa total falta de comprometimento imbuídos na severa ganância de corrupção e poder a todo custo.
É de extrema importância que crianças e adolescentes em formação tenham contato com a arte, pois o conhecimento da arte envolve o desenvolvimento afetivo e emocional, além de estimular o racional e intelectivo, estimula a percepção, promove a livre expressão e o espírito de coletividade.
Segundo Ana Mae Barbosa, nas pesquisas sobre artes integradas, que defendem um trabalho de interdisciplinaridade no ensino de teatro, dança, música e artes visuais nas escolas, foi possível comprovar avanços individuais e coletivos dos alunos tais como: autoconfiança; melhora do autoconceito; capacidade de assumir riscos; concentração de atenção; perseverança; empatia pelos outros; autoiniciação à aprendizagem; persistência em tarefas difíceis; aprendizagem autoral; habilidades de colaboração; liderança; evasões reduzidas; aspirações educacionais mais altas e habilidades de pensamento de ordem superior. Ela ainda afirma que “retirar arte das escolas de Ensino Médio é reduzir a possibilidade do desenvolvimento de habilidades importantes em outras disciplinas além das artes”.
Conforme Goulart (2013), a questão não é entender a arte como um meio, mas como um fim, com suas muitas feições, sempre promovendo o encontro do eu com o outro e revelando a faceta criadora, crítica, múltipla, transformadora e – por que não? – [primordial] do ser humano. A atividade estética enriquece e completa a realidade da natureza e da humanidade social preexistente ao conhecimento e ao ato ético, criando a unidade concreta desses dois mundos: coloca o homem na natureza, seu ambiente estético, humaniza a natureza e naturaliza o homem” (GOULART, 2013, p. 79).
Por que será que a Arte intimida tanto aos que são ditos “representantes do povo”? Porque a arte transforma e liberta. Segundo Ernest Fischer “a arte é necessária a fim de que o homem possa conhecer e transformar o mundo. Ela nos revela porque existimos ao imbuir nossa vida do sentimento de adequação” (FISCHER, 1987, p.17). Como disse o poeta Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta” (TRIGO, 2016).
Como diz o artista, cantor, compositor e pensador Caetano Veloso: “Será que apenas os hermetismos pascoais, e os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais, nos salvam, nos salvarão dessas trevas e nada mais?” Bem, “enquanto os homens exercem seus podres poderes”, nós, os artistas brasileiros, tentamos a duras penas contribuir para a construção de um mundo melhor. Ao dizer nós, me refiro a todos que realmente exercem sua cidadania ou pelo menos tentam exercê-la, a todos que se mobilizam e se engajam.
Em tempos sombrios e incertos, diante da crise política brasileira, diante de tantas podridões estourando nas instâncias governamentais, das barbáries ainda cometidas contra negros, índios, homossexuais e comunidade LGBT, da intolerância religiosa, da ebulição de tantos discursos de ódio e radicalismos contundentes e extremistas, é preciso que façamos alguma coisa urgente.
Argumentamos que ser artista e ensinar arte nesse país é desbravar-se a cada dia, pois é preciso muita coragem e disponibilidade para andar numa corda bamba diante do abismo, seja em tempos de guerra, paz ou terrorismo. Eu creio no poder da arte, na arte como potência de transformação, de fluxo de vida e de equilíbrio. A arte a serviço da formação humana e de busca de integração de nossas essências. Talvez, depois de argumentar com os mesmos estudantes do caso acima relatado, ainda assim, eles perguntassem: o que isso tem a ver com formação educacional? Tudo.
* Ronaldo Magalhães
Mestre em Artes Cênicas
(PPGAC-UFBA)
Escritor e Roteirista.
Artigo publicado no Jornal Fuxico Ano XV – Nº 37 – Jan/Abr. 2017(Núcleo de Investigações Transdisciplinares-NIT – Departamento de Educação/UEFS)
Link da imagem : www.arteref.com/arte-entenda-qual-e-o-papel-da-arte-na-educacao
Referências:
FISCHER, Ernst. A Necessidade da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1987.
GOULART, Cecília Maria Aldigueri. Política como ação responsiva: breve ensaio acerca de educação e arte. In: FREITAS, Maria Tereza de Assunção (Org.). Educação, Arte e Vida em Bakhtin. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
TRIGO, Luciano. ‘A arte existe porque a vida não basta’, diz Ferreira Gullar. Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/flip/noticia/2010/08/arte-existe-porque-vida-nao-basta-diz-ferreira-gullar.html>. Acesso em: 02 mai. 2016.
Era uma vez… A obrigatoriedade das artes no currículo do ensino médio Entrevista com Ana Mae Barbosa. <https://www.select.art.br/era-uma-vez-obrigatoriedade-das-artes-no-curriculo-do-ensino-medio/ > Acesso em: 23.abr.2018.