A vaidade é um obstáculo difícil de ser contornado, como qualquer um pode constatar. A vaidade não apenas é um problema de caráter, um traço de uma pessoa isolada, mas também pode ser um detalhe existencial, envolvendo toda a nossa espécie, principalmente no modo como fazemos ciência e interpretamos o mundo. O humano é sempre o nosso critério, aquela matriz que organiza nosso olhar, ou mesmo nossa própria percepção, ao fazer das experiências um todo bem encadeado e não um caos perigoso. A vaidade nos torna o centro do universo, a meta da caminhada evolucionária, se você for algum secular, ou nos torna a imagem de uma criatura divina, se você for alguém mais religioso. Não importa se a linguagem é articulada em uma igreja, em um sindicato, ou mesmo nos corredores dos prédios de ciências sociais, o humano continua sendo aquela matriz de referência, o nosso ponto de partida e de chegada, ou seja, o nosso horizonte.
Antes de um mergulho mais profundo, lá onde a luz quase não chega, vamos começar com um pequeno experimento, nada muito complicado. Apenas feche os olhos e diga o que vem à cabeça quando você ouve (lê) a palavra SOCIEDADE. Aos poucos uma imagem se forma em sua mente, uma imagem cada vez mais clara. Nesse retrato mental, você enxergou pessoas, certo? Pessoas talvez circulando com seus carros, em seus ônibus, sentados em suas aulas, pagando suas contas, contando suas histórias, etc. A sociologia, óbvio, deve estudar justamente isso aí, os humanos, suas atividades, nada além. Ou talvez não? Esse é o nosso objetivo de hoje, nessas linhas, nada mais do que um esforço para sair um pouco da nossa vaidade cotidiana, o que pode incomodar alguns, sem dúvida. Claro que o percurso é áspero, muito perigoso, mas pode ser também esclarecedor.
A vaidade nos impede de pensar a sociologia para além dos limites do humano, como bem lembrou Gabriel Tarde no século XIX, ou mesmo Nietzsche, nessa mesma mesma época. É óbvio que não queremos comparação com animais, já que animal é muito corpo, muita matéria. Animal são fezes, urina, incesto, e tudo aquilo que mancha nossa linguagem conveniente, nosso tecido branco do dia a dia, aquele que vestimos para os outros. Tivemos dificuldades de engolir o darwinismo, se é que engolimos em algum momento. É muito angustiante aceitar que o mundo não foi feito para nós, humanos, sendo apenas um poço arbitrário, um campo descentrado e sem um thelos, uma meta. A sociologia contemporânea ainda é muito pré-darwiniana, ainda iludida com a grandiosidade dos humanos, entendendo que não existe sentido além do seu universo, das suas palavras, da sua tecnologia. Uma pesquisa é simplesmente a prática de pesquisadores, suas analises, seus métodos, seus investimentos, seus conflitos, não é? Talvez não seja tão simples assim, talvez seja uma grande fantasia acreditar que somos a matriz absoluta de sentido.
Carregamos a crença de que a sociedade é sustentada por pessoas, por iniciativas individuais, numa postura liberal, ou movimentos mais coletivos, numa abordagem marxista. De qualquer maneira, o humano sempre é o nosso critério, a causa das causas, o motivo dos sofrimentos, das crises, ou mesmo das mudanças, das revoluções. Os animais, ou a natureza, entram apenas como penetra, como um efeito, ou mesmo como um suporte sem vida esperando humanos imprimirem sentido. Animais seriam tábulas rasas, apenas suportes antropomórficos, jamais carregando um sentido próprio, uma história singular, ao contrário. Um cão, assim como a natureza em geral, nada mais é do que uma folha de papel em branco, ao menos é assim que a sociologia trabalha quando volta seus olhos para o terreno da natureza.
Um animal, nessa linguagem mais clássica, nada mais é do que uma extensão dos sentimentos humanos, sendo apenas uma argila prestes a ser moldada pelas mãos de um oleiro. Animais, nesse cenário, não criam, não produzem, apenas reagem a estimulos externos, quase como máquinas sem vida, como diria Descartes. Na tentativa de abraçar outras possibilidades de sentido, além da humana, é preciso uma linguagem mais modesta, menos vaidosa, mais descentrada. Caso contrário, a pretensão vai tomar conta das palavras, assim como do nosso próprio corpo. O mundo não é um prolongamento do meu querer, muito menos a natureza é apenas uma massa de modelar, ao contrário. O mundo pulsa, o mundo é cheio de vida e de surpresas, basta saber ouvir, basta aprender a se afetar, diria Espinoza.
Referência da imagem:
http://cantinhodalolars.blogspot.com.br/2011/03/dicas-importantes.html