
O casamento é uma das tradições mais antigas da humanidade. Visto como sacramento, cerimônia ou celebração entre duas pessoas que possuem um interesse comum, sendo uma espécie de acordo formal e solene, onde os nubentes firmam um compromisso diante de algumas testemunhas e se comprometem a viver segundo o que fora proclamado.
No último sábado (19), holofotes do mundo inteiro foram direcionados para a capela de São Jorge, no castelo Windsor, onde ocorrera o casamento real entre a atriz norte americana Meghan Markle e o príncipe Harry, sexto na linha de sucessão do trono britânico. Sem sombra de dúvidas, esse poderia ser mais um conto de fadas tradicional, caso não estivesse recheado de pequenos atos políticos e mensagens subliminares no decorrer da cerimônia, inusitadamente abordados em temas como preconceito racial, social e cultural.
A mídia utilizou desse assunto à exaustão, contudo elenco alguns fatos capazes de provocar, ao menos, uma reflexão. Não podemos negar que se trata de uma união entre duas raças distintas, culturas diversas e caráter intercontinental. A noiva, descendente de escravos trabalhadores da lavoura de algodão, atriz, norte americana, divorciada, feminista e com uma mãe afro-americana. O noivo, natural de um país imperialista, membro de uma das mais tradicionais e conservadoras estruturas políticas da realeza britânica.
Não há como negar que vivemos em uma sociedade, onde os diversos preconceitos são latentes. Machismo, racismo e eugenia apresentados em dados alarmantes. Numa sociedade de tantos ismos, o diálogo tornou-se algo extremamente banalizado, mantendo-nos cada vez mais distantes uns dos outros.
Naquela catedral, os noivos propuseram ao mundo uma reflexão. Com tantas diferenças ali representadas no gosto, na cor, na posição social, na origem, deixaram claro que o diálogo não está relacionado a títulos, a normas de etiqueta ou a protocolos pré-determinados. Essa troca exige, por sua vez, tudo dos dois lados, sendo capaz de desencadear um enriquecimento mútuo. Os noivos se propuseram a isso e o fizeram com muita elegância e simbologia. Não somos seres apáticos, precisamos nos posicionar e fazer de cada ação nossa um ato político. E, se o fizermos por meio do diálogo, a coisa tornar-se-á deveras sensacional.
Lindo ver o diálogo entre o Bispo anglicano e o norte americano, ambos “dividindo” um altar (espaço físico e institucional) em uma celebração ecumênica. Talvez, eles não venham a estabelecer uma semelhança na doutrina religiosa, no entanto falaram de amor e, apenas esse aspecto, tenha servido para tocar qualquer vivente, celebrando sobre um ponto que lhes era comum. Não existe ser humano indiferente ao amor. Outra coisa relevante é a ocupação dos espaços de poder. Se nos perguntarmos quais espaços o negro e o branco ocupam? Ali, ambos tinham o mesmo espaço, o mesmo valor! Independente da cor, do país ou da instituição representada por eles.
Uma maestra negra comanda um coro inteiro, formado por músicos negros, belos e diversos em timbre e tom de voz. Mulheres lindas, empoderadas, com seus penteados que representam toda a sua autoafirmação, em perfeita sintonia com chapéus casquetes, voilettes das europeias que ali estavam, representando um diálogo. Em contrapartida, outro coro tradicional proclama hinos de modo extraordinário. Clássico e gospel encontram espaço nos corações, dando novamente um testemunho de diálogo.
O magnífico véu de cinco metros de comprimento, tecido à mão, também tem a sua simbologia. Cada flor ali bordada representando os 53 países da Commonwealth. Ali me parecia ver expressa a beleza da diversidade dos povos, de como são delicados os meandros para que possamos estabelecer diálogos concretos sem que o outro seja oprimido, mantendo suas características culturais preservadas. As bordadeiras, não citadas pelo nome, representam todas as mulheres anônimas que se unem contra o silenciamento coletivo imposto pela sociedade, resistindo a lutas aparentemente perdidas. Silenciosamente, por meio de ações cotidianas, essas mulheres vão tecendo uma nova história, ou melhor, a sua própria história.
O buquê da noiva, indispensável em qualquer “ritual” de casamento, foi montado com uma grande diversidade de flores. Algumas nobres e delicadas; outras, colhidas ali no canteiro do jardim real. Tal simbolismo expressa a importância de todos no projeto de mundo justo e igualitário que desejamos. As flores em si já são belas e completas, mas juntas compõem algo mais significativo, representando a própria essência. Outro ponto considerável está na escolha da Givenchy para a elaboração do vestido. É curioso notar que pela primeira vez na história dessa grife de alta costura, uma mulher tenha assumido a presidência. Temos aqui uma nova simbologia contra o machismo, no entanto temos também a necessidade de dialogar, resistir e lutar para que as mulheres possam obter seu espaço.
A presença da princesa Diana, mãe do noivo, foi lembrada de modo singelo. Sua flor favorita era uma das que compuseram o buquê da noiva. Além disso, um acento havia sido reservado em sua memória ao lado do príncipe Willian. E por que falar dela? Porque as referências que possuímos, no presente, são frutos de alguém que lutou por uma causa no passado. Diana dialogou com organizações e pessoas de culturas diversas, mas nunca perdeu a alegria. Boaventura Santos fala que revolucionários precisam ser alegres e competentes. Sua figura também pode representar o quanto ainda estamos dispostos a, em nome do diálogo, conferirmos importância àquilo que para o outro tenha significado. Diana mudou a monarquia e mudou a forma do mundo pensar e se comportar diante de algumas realidades negligenciadas.
Por fim, falarei de uma coisa íntima que é o olhar dos noivos durante a cerimônia. Também ali, existe uma simbologia. Uma mulher feminista tem o direito de se apaixonar, de constituir família, de ser linda! E temos o mesmo direito de negar tudo isso. Sua busca por espaço e reconhecimento não pode ser diminuída por qualquer que seja a convenção de um tipo de comportamento estabelecido ou esperado.
Terminados os exemplos, concluo o ensaio pensando que o casamento de Megan, sem extravagância ou rumor, tocou sutilmente em feridas seculares da história da humanidade: racismo, escravidão, diversidade, feminismo tendo como resposta a capacidade que o homem possui de usar dos espaços que está inserido para torná-lo uma “arena” política, gerando por sua vez, reflexão acerca do valor do diálogo sobre as nossas ações.
Fonte:
https://oglobo.globo.com/mundo/artigo-casamento-de-meghan-harry-mais-sobre-dialogo-do-que-sobre-contos-de-fadas-22699488
http://www.ceert.org.br/noticias/comunicacao-midia-internet/21974/presenca-negra-faz-a-diferenca-no-casamento-de-harry-e-meghan
https://istoe.com.br/beverly-hills-negro-se-empolga-com-casamento-da-princesa-meghan/
http://www.focolares.org.br/escoladecidadania/wp-content/uploads/2017/10/2.1.1-Curso-Arte-do-Dia%CC%81logo-Aula-1-Texto.pdf
https://veja.abril.com.br/entretenimento/casamento-real-veja-o-que-harry-disse-ao-ver-meghan-markle-no-altar/