É curioso como funciona a cabeça daqueles defensores de uma abordagem mais estrutural, ao menos nas ciências humanas. A estrutura é apresentada como uma coisa objetiva, externa, sempre cientifica; um tipo de ponto de chegada de uma investigação séria, ao lado de muito investimento de tempo e dinheiro. A estrutura é apresentada como a resultante de uma pesquisa cuidadosa, transparente e crítica. Mas o que se percebe, olhando de perto, é o quanto a abordagem estrutural nada tem de ciência, sendo apenas um instrumento conveniente e unilateral, já que nunca é aplicada a todos, mas apenas ao outro, reservando a mim o direito ao trono da liberdade, da consciência e da reflexão. Eu, sujeito crítico, nunca estou dentro do jogo estrutural, nunca sou capturado por sua névoa suspeita, nem mesmo nos meus sonhos, espaço talvez de maior vulnerabilidade. Eu sempre estou nas marginais, no entorno, exercendo inocentemente minha liberdade, minha “consciência crítica”, como dizem por aí. Será mesmo assim que as coisas funcionam, ou talvez exista uma parte não contada dessa história, uma parte talvez bem inconveniente? Esse é o nosso objetivo de hoje, aqui nessas linhas.
Quando Flávia sai de sua casa, no final de semana, e decide assistir o novo Velozes e Furiosos, ela não sabe, mas existem fatores ocultos que influenciaram sua decisão, fatores que repousam por trás de todas as suas justificativas, algo muito além do seu próprio entendimento, quase como uma malha inconsciente, uma engrenagem oculta, lá nos bastidores. Por outro lado, quando EU decido sair de casa, também no final de semana, e resolvo assistir 8 ½ de Fellini, ou Dogville de Lars Von Trier, você pode não acreditar, mas minha decisão foi livre, espontânea, transparente, sem nada de estranho por trás, entre, ou acima. Flávia, pobre iludida, pensa que é livre, pensa que está no controle da própria vida, acredita nas decisões que faz, mas infelizmente ela não tem ideia dos VERDADEIROS MOTIVOS. EU, personagem autônomo, kantiano, ao contrário, exerço a liberdade sem problemas, tendo plena consciência do meu corpo e dos vetores que o afeta. Ao menos essa é a historia que contam por ai, a história daqueles que usam uma linguagem estrutural.
A estrutura é usada apenas como uma arma de ataque, ou escudo de defesa, nada mais do que uma ferramenta. Ela é sempre atribuída a algo que me incomoda, me insulta, algo que já não gosto, algo de desprezível. Já aquele cenário conveniente, agradável, aquele algo que me constitui, ele nunca é capturado pelas amarras estruturais, ao contrário. Nós acreditamos que o poder é sempre vertical, externo, como um líder autoritário sentado em um trono reprimindo pessoas, gritando “não” aos quatro ventos, podendo ser também o Estado, a Globo, o Capitalismo, etc. Para nós, o poder nunca está na minha identidade, no que eu sou, no que eu acredito, ou melhor, nunca está no meu EU. No máximo, está no EU do outro, como em num gesto conveniente e hipócrita.
A consciência crítica, enquanto exercício sincero, só vai realmente existir quando perder sua face unilateral, conveniente, apenas aplicada ao que não gosto e ao que não sou. Ela precisa ultrapassar os limites da conveniência, indo até mesmo aos lugares que mais admiro, ainda que essa jornada não seja nada confortável. Com certeza, não é fácil, mas esse percurso garante a honestidade intelectual, o compromisso com a verdadeira reflexão, e não apenas aquela confortável a mim, aquela produzida apenas para tranquilizar a minha própria consciência, garantindo um bom sono durante a noite, ao ter a certeza de que tudo faz sentido, tudo permanece bem encadeado, ou seja, a certeza de que o mundo cabe inteiramente nas minhas definições.
Felizmente, a crítica é algo maior do que eu, algo muito além do que eu quero ou deixo de querer, muito além de uma simples escolha infantil. O querer não interessa, mas apenas o desejo, enquanto liquido que transborda, enquanto algo que ultrapassa os limites da própria linguagem, indo além da conveniência, ao abraçar novas possibilidades de sentido. Nesse cenário, a verdadeira crítica tem autonomia, podendo até mesmo se voltar contra mim, contra meu corpo, contra meu EU. A dúvida, portanto, é uma companheira persistente, não importa para onde se olhe, não importa o percurso escolhido. Se é a certeza que o movimenta, caro leitor, se o mundo ao seu redor é todo ele bem costurado, com cada coisa bem representada, dentro de categorias muito bem definidas, algo não cheira bem aqui. Você chama isso de “consciência crítica”? Desde quando ela foi criada para ser seu berço, seu porto seguro, seu guia? Desde quando a linguagem tem que obedecer aos contornos do seu EGO e das necessidades que giram em torno dele?
A verdadeira consciência crítica lança o meu corpo direto a um mundo autônomo, rico, complexo, incapaz de ser contido ou constrangido pela minha linguagem. O mundo não é uma extensão do meu querer, dos meus encadeamentos, muito pelo contrário. Muito menos é uma extensão das minhas carências, numa espécie de neurose qualquer. A consciência crítica tem vida própria, tem energia, muito mais do que você pode imaginar. Os palácios de cristal, como diria Dostoievski, se referindo as grandes estruturas teóricas, apenas arranham a superfície do mundo, atrofiando muitas vezes o fluxo de vida, a experiência legitima de um mundo vivo, um mundo rico, um mundo cheio de possibilidades.
Enfim, os adultos já aprenderam que a realidade lá fora não obedece minhas expectativas, não sendo uma extensão da minha vontade, daquilo que mais preciso. Somente as crianças, diria Freud, ainda vivem em um mundo de conveniência, já que não aprenderam direito como as coisas funcionam, perdidas ainda em ilusões. E você leitor, já cresceu ou ainda continua engatinhando?
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