A crise que não vira manchete e a realidade transbordante

O ano é 2018 e o Brasil passa por uma dramática greve dos caminhoneiros que já dura quase uma semana. Os brasileiros observam com a incredulidade de quem, mesmo acostumados à palavra “crise”, em seu sentido de urgência esvaziado pela familiaridade, não a sentiam de forma tão latente como nos últimos dias. Os efeitos da greve se propagam em cascata, indo desde a falta de combustível nos postos à iminência de racionamentos hídricos e falta de alimentos e insumos hospitalares.
A enxurrada de comentários midiáticos e populares vindos de todo o espectro político, em crescente polarização, só ajuda a nublar a já precária análise crítica da realidade de pessoas que entendem cada vez menos o que está acontecendo. Quando o básico à vida cotidiana está em risco, o pragmatismo se impõe e exige o retorno à “normalidade”, mesmo aquela na qual a presença etérea da crise está sempre à espreita. A greve dos caminhoneiros é importante em diversos aspectos, dos quais destaco a dependência absoluta da humanidade em petróleo e derivados, de tal forma que, como espero demonstrar, aponta à infeliz ironia do dilema contemporâneo mais notoriamente negligenciado. Mas o paradigma da greve em curso não é o foco da abordagem aqui. Na realidade o plural cabe mais: paradigmas, interações constantes entre aspectos da realidade tradicionalmente tratados em separado.
Em tempos saturados de milagres da tecnologia e da produção, a fé iluminista nos frutos da razão alcança alturas que provocariam inveja recalcada até nas doutrinas neopentecostais. A robustez do status quo global às suas crises se revela na própria efetividade com que seus contrapontos têm sido aglutinados pelo discurso hegemônico. O caso clássico que dá substância à ironia mencionada é a dimensão ecológica do que reconheço como a crise sistêmica da contemporaneidade.
O carvão e o petróleo, há menos de 300 anos se tornaram a principal fonte de energia e matéria prima que sustentam as curvas exponenciais que observamos no crescimento populacional, na produção de commodities e mercadorias, nas revoluções tecnológicas e por aí vai. Notamos, sem muita surpresa, a estrita correlação entre a emissão (adivinhem: também exponencial!) de gases de efeito estufa na atmosfera - resultados diretos da indústria, do setor energético, dos transportes, da agropecuária, descarte - e o aumento da temperatura média do planeta. As famigeradas mudanças climáticas invadiram a pesquisa científica no último século, mas a opinião pública só foi convocada a essa emergente realidade nas últimas três ou quatro décadas.

Mas se esperávamos, com nossas almas adestradas no romantismo otimista do mantra hollywoodiano “it’s gonna be okay/vai ficar tudo bem”, que os Estados nacionais constituintes da ONU lidassem de forma assertiva ao que a ciência começava a alertar, estávamos tristemente enganados. A UNFCCC (Convenção Quadro das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas) causou burburinho na ECO92, no Rio de Janeiro, com a novidade do desenvolvimento sustentável, o deus ex machina que havia chegado para nos salvar. Doce ilusão. O fracassado Protocolo de Kyoto demonstrou a início do que se tornaria tendência no século XXI: as manobras e dribles que as nações industriais estariam dispostas a fazer para a um só tempo convencer a opinião pública de que tudo estava sob controle, enquanto mantém as curvas do crescimento possibilitado pelo jovem neoliberalismo movido a petróleo financeirizado (eis o petrodólar).
Os créditos de carbono surgiram como ativos a serem trocados entre empresas no mercado internacional, possibilitando reduzir as emissões de carbono num local e continuar a degradar em outro, sob a égide da “sustentabilidade”. Notou-se que o selo verde vende mais, pois quem não gosta de continuar a consumir e saber que está ajudando a plantar árvores em algum canto da África? Ou que o fabricante de seu celular usa painéis solares em suas fábricas? Afinal de contas, “se consumirmos de forma mais consciente, as empresas terão que remodelar suas práticas”. E assim as mudanças climáticas se tornam uma realidade a cada dia mais presente, ao passo que a dinâmica que a ocasionou continua a pleno vapor... e fumaça.
As mudanças climáticas antropogênicas são acessórias nos discursos políticos e sobretudo econômicos. Ouvir referências a essas questões na discussão acadêmica, mesmo na literatura crítica, é raridade. Parece uma realidade abstrata, distante, inconveniente, quase irrelevante. Mas o tempo urge. A janela para ação segura está cada vez mais curta, e esse é o mundo no qual a corrida nuclear ainda está em curso, no qual o petróleo continua a imperar e ditar rumos, o mundo em que o pensamento hegemônico insiste em fatiar a realidade em porções virtualmente alheias umas às outras.
O espírito de nosso tempo é irônico. Sabemos que o petróleo deveria continuar no chão, mas a exploração neurótica continua a sustentar o mundo como o conhecemos e experimentamos. Não sejamos ingênuos, esses problemas estão em aberto e não serão altruisticamente abordados por quem tem interesse econômico e político na continuidade desse jogo perverso. Neste ano eleitoral, o papel e os rumos da Petrobrás como ativo estratégico nacional já está em evidência, sem dúvida. Mas deixaremos a discussão parar aí? Como o Brasil pode se posicionar numa possível guinada geopolítica no que concerne as mudanças climáticas e a dependência do petróleo? Continuaremos esperando a hecatombe ecológica deitados em berço esplêndido? Convido os leitores ao debate
A dimensão ecológica da crise sistêmica em que vivemos é mais abrangente e profunda do que estamos acostumados a considerar, e ela não é mais só uma possibilidade futura, ou algo que se possa facilmente controlar. Não posso pretender esgotar essa discussão num só artigo, nem mesmo em dezenas deles. Mas pretendo construir reflexões e debates transversais, sempre buscando abordar a ecologia das crises em suas interrelações, nos interstícios dos discursos, nos aspectos e cenários emergentes. Além das mudanças climáticas antropogênicas, refletiremos sobre a sexta extinção em massa da biota terrestre, sobre os oceanos de plástico, sobre filosofia, ciência, futuro e vida. A construção dessas reflexões, em artigos futuros, não será fácil nem confortável, mas emerge da necessidade.
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