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Sobre o perdão e a vingança


Mãe do jovem assassinado por Balal Abdullah deu-lhe um tapa no rosto momentos antes de conceder o perdão, que salvou o homem da morte (Foto: Arash Khamooshi/Isna/AFP). Fonte: G1



Em 2007, Balal Abdullah, durante uma estúpida briga na rua, matou um adolescente de 17 anos chamado Abdollah Hosseinzadeh com uma faca. Julgado, a condenação seria executada sete anos depois e pelas leis do Irã, país onde o crime ocorreu, os familiares têm o direito de invocar uma reparação semelhante ao que seria uma versão atual da lei do Talião “olho por olho, dente por dente”. Abdullah foi condenado a enforcamento público, com presença da família da vítima na plateia.


Com efeito, quando ele estava prestes a ser executado, a mãe de Hosseinzadeh, que assistia à comutação da pena, correu em direção ao patíbulo, deu um tapa em seu rosto dizendo “nunca mais faça isso! ” e concedeu-lhe o perdão. Nas imagens divulgadas pela agência de notícias local Isna, é possível ver os parentes do jovem morto retirando a corda de seu pescoço. Ao ser perguntado sobre o porquê da sua mulher ter feito aqui, Abdolghani Hosseinzadeh, pai da vítima, afirmou que ela sonhara com o rapaz e este lhe disse que estava em um bom lugar e que não deveriam prosseguir com a retaliação.


Essa história me fez lembrar de A Tempestade, de William Shakespeare. Ainda que ela não seja a minha obra preferia do bardo inglês (aguardem minha coluna na quarta-feira), ela guarda uma mensagem poderosa, que quase sempre me vem à mente quando me deparo com uma situação parecida como a que acabei de narrar. A peça conta a história de Próspero, duque da cidade de Milão, vítima de uma conspiração do próprio irmão, Antônio, com Alonso, rei de Nápoles, com o intuito de apeá-lo do poder. Banido para uma ilha com sua filha Miranda, Próspero, que também era mago, trama um plano para atrair seus inimigos, que viajavam em um navio (com uma tempestade, como não poderia deixar de ser) e se vingar deles. Depois de vários acontecimentos, Próspero se arrepende e perdoa aqueles que tramaram contra ele, os levando a salvo de onde vieram.


Em comum, essas duas histórias têm a capacidade de nos fazer refletir sobre dois temas caros para a humanidade, desde tempos imemoriais: a vingança e o perdão. De um lado, a vingança simboliza a restituição, a resposta contra algo que viola um estado inicial (norma, conduta, por exemplo) e a sua normalização só poderá ser feita com uma ação reativa e em sentido contrário. E foi imbuído do sentimento de vingança, humilhado pelos que o cercavam e rejeitado pela mulher que amava, o sombrio Heathcliff de Wuthering Heights¹ passa parte de sua vida alimentado pelo desejo de se vingar de todos das famílias Earnshaw e Linton. Em tempo, se não estiver em uma "bad", recomendo vivamente a leitura da obra.


Do outro, o perdão simboliza o ato de, mesmo mediante grave ofensa, oferecer a nós mesmos a capacidade de não alimentarmos nenhum tipo de sentimento ruim por aquele que nos causou ofensa. E como a palavra perdão está tão arraigada à cultura cristã, creio que o exemplo maior não poderia ser outro senão o próprio Jesus Cristo. Este, após ser condenado em julgamento público, humilhado, torturado e crucificado, disse:


- Pai, perdoa-lhes, pois não sabe o que fazem.²


Em outra passagem bíblica, levaram à sua frente uma mulher adúltera, cuja sina deveria ser o apedrejamento. Após pedir que, aqueles que não tivesse pecado, atirassem a primeira pedra – e todos saíram em seguida –, perguntou à mulher se alguém tinha lhe condenado. Obtendo a resposta negativa, disse:


- Nem eu te condeno, vai e não peques mais.³


Nesse segundo exemplo, percebe-se que Jesus amplia a compreensão do perdão dando um sentido não apenas individual, mas um imperativo ético a ser aplicado a nossos semelhantes. Ainda que ele estivesse diretamente ligado ao acontecimento, apedrejar a mulher significava vingar-se de um princípio social (lei de Moisés). Enquanto judeu, nada mais estranho que seguir o prescrito a esse tipo de crime. Mas ao contrário, Jesus acena não apenas com o perdão, mas com a instituição de um novo começo para aquela mulher.


Não é segredo para ninguém que vivemos em tempos que mais lembram a Idade Média. Quem assiste tv ou mesmo tem rede social, não se cansa de ver casos de violência, muitas delas abomináveis e nos sentimos como simples aldeões vivendo em um grande Game of Thrones de tétrica realidade. E é claro que toda essa violência não deixaria de ser adubo fértil para uma reação. Consolida-se a passos largos um sentimento coletivo de intolerância contra os que cometem crimes (ou mesmo são acusados de) e que reavivam o desejo de linchamento de séculos atrás. Creio que não é preciso vasculhar muito para encontrar por aí pessoas aplaudindo e comemorando execuções sumárias de suspeitos. Quem não lembra do senhor Bruno Júlio, ex-secretário nacional de Juventude, que há época das chacinas em Roraima e Manaus disse “Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”.


Para os que já pegaram as pedras e pensaram “tinha que ser do governo golpista”, peço calma: Bruno Júlio, infelizmente, não está só. Na verdade, ele é o exemplo lapidar de um pensamento médio em que o criminoso é relegado não apenas a uma subcidadania, mas uma subumanidade. São mortos aos milhares todos os anos, alguns pela própria polícia, sob a aprovação social que não reconhece fronteira nos estratos sociais. E como se a tragédia não estivesse de boa monta, encontramos o debate sobre o tema emperrado, porque qualquer um que argumente contra a onda punitivista é taxado de “defender bandido”. O mantra “bandido bom é bandido morto”, a cada dia mais, é entoado por corações e mentes ciosos por uma punição a “tudo que está aí”. Talvez o único fato novo é que agora políticos – e a política por tabela – começaram a compor essa rapsódia cheia de medo e fúria.


O que a senhora Hosseinzadeh, Próspero e Jesus nos mostraram – cada um à sua maneira – é que independente daquilo que ocorre conosco, nós temos a capacidade do perdão. Não guardar rancor de quem nos fez mal, ou mostrar compaixão por quem errou. Hannah Arendt, ao apresentar o perdão e a promessa como forma de reconciliação na política, em um mundo cindido irrupção do fenômeno totalitário – onde a promessa surge como uma espécie de pacto celebrado coletivamente, com vistas a evitar que o fato que necessitou do perdão não torne a acontecer – recupera o cerne do pedido de Jesus “não peques mais”.


Forgive is not forgot: perdoar não é esquecer, diz o ditado. Não se trata de uma apologia ingênua para que atos cometidos na esfera individual – e a violência no âmbito coletivo – sejam naturalizados, mas ao contrário: devemos manter vigilância constante contra ambos. O que não me parece nos levar a um bom caminho é continuarmos a marcha da insensatez e compactuarmos com a violência, como a única solução para a violência. Se uma mãe que teve seu jovem filho esfaqueado – “bem” mais precioso que uma mãe pode ter – perdoou o assassino, é razoável que alguém mereça ser linchado (LINK) por um aparelho celular? Mas não, a crítica morre na esterilidade do discurso de quem se preocupa com “bandidos”, em detrimentos dos “de bem”.


Infelizmente, são poucos os que defendem a cidadania e demais princípios civilizatórios como um valor universal e inalienável, sem cair em proselitismo conveniente, tal qual os que defendem um ex-presidente preso (a meu ver, injustamente), mas aplaudem o que fizeram com um senador Aécio Neves e fizeram – e ainda fazem – com o atual presidente. Definitivamente, não navegamos para um bom lugar e cada vez me convenço que não há sinais de mudança à vista. Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, nunca fez tanto sentido:

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

¹Morro dos Ventos Uivantes, da escritora inglesa Emily Brontë.

²Lucas 23:24

³João 8:11

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