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TODO SOCIÓLOGO É UM PSICANALISTA DISFARÇADO: Linguagem, Nietzsche e corpo



Seria perfeito um mundo bem costurado, com fronteiras definidas, assim como uma linguagem pragmática, disposta sempre a justificar meus deslizes ou a incoerência da realidade ao meu redor. Seria perfeito um cenário como esse, um mundo conveniente, um signo conveniente, ou seja, um espaço onde o meu desejo não fica desamparado, muito pelo contrário. Por que não pensar no mundo como uma extensão da minha linguagem, nada mais do que um prolongamento das minhas crenças, das minhas interpretações? Nesse modelo, tudo já se encontra encaixado, cada detalhe, mesmo os aparentes acasos, ou até as surpresas. Nessa história, eu sou o herói, o centro da narrativa, a figura que comanda, inclusive, o destino de todas as outras, num tipo de jornada épica qualquer. Nessa mesma história, os valores são claros, assim como a fronteira entre o certo e o errado, quase como numa novela, aquela que você assiste quando chega do trabalho. Ainda nessa incrível história, minha linguagem é um todo coerente, uma costura bem feita, sem manchas pelo caminho, tendo apenas o meu "EU" como sua matriz de sentido, um tipo de estrutura fundamental.


Por mais conveniente que seja esse sonho, essa bela neurose, muitas vezes é preciso seguir um outro rumo, talvez mais arriscado. A busca é por uma sociologia alternativa, uma linguagem que ultrapasse as fronteiras de qualquer conveniência, indo até o limite do previsível, mesmo que a angústia faça parte do processo. A postura genealógica, em Nietzsche, possui justamente essa caracteristica, sendo um tipo de técnica, ou até mesmo uma habilidade quando o assunto é o signo e sua relação com o mundo. Freud, no início do século XX, retoma essa mesma genealogia, mas agora de uma outra forma.


A associação livre, regra fundamental da psicanálise, nada mais é do que uma genealogia reconfigurada, transformada em uma técnica clínica, embora mantenha sua estrutura básica de funcionamento, como vai ser discutido agora. A linguagem continua sendo colocada no limite, implodida, de certa forma. Como na genealogia, sua estrutura linear é quebrada, dispensando todo tipo de conveniência, mesmo aquela mais insuspeita. O “ego” representa essa linearidade, essa matriz, como qualquer outro transcendental. Romper essa harmonia, essa bela costura, é trazer à tona as conexões de fundo, todo um inconsciente criativo, um inconsciente como uma fábrica, diria Deleuze. Embora o desconforto seja um parceiro, até pela própria angústia gerada no processo, a criatividade não fica atrás, conseguindo, enfim, ganhar terreno, como o proprio Nietzsche imaginava. Seguindo o mesmo percurso que a genealogia, a associação livre não pretende resgatar algum tipo de verdade sobre as coisas, algum predicado perdido por aí; o objetivo é resgatar "o lance de dados" de Mallarmé, um espaço criativo e sempre em movimento.


O próprio corpo que aparece no final de uma análise, assim como na investida genealógica, não é aquele comum, fenomenológico, mas um corpo-intensidade, o corpo sem orgão. Como consequência, é o desejo o critério, não o prazer. O segundo é sempre capturado por algum tipo de vínculo causal, um objeto a que se dirige, quase como numa estrutura instintiva qualquer. Já o primeiro, o desejo, é disperso, descentrado, criativo, podendo fazer parte de qualquer agenciamento, seja ele humano ou não. O fluxo desejante é um efeito colateral do corpo sem orgão, da mesma forma que é um efeito da associação livre, uma técnica revolucionária, porque genealógica.


Em Lacan, o objetivo de uma análise não é resgatar uma verdade por trás do sujeito, já que, para ele, a verdade não é um saber, não é algo que pode ser teorizado, muito menos é um corpo sistemático de conceitos. O que vem à tona, no final da análise, nada mais é do que a cadeia de significantes, ou seja, o movimento das palavras, suas articulações, e não seu significado. Esse último, ao contrário do que poderiam pensar, sempre está distante, escondido, bloqueado, assim como o objeto do desejo é inacessível. A única realidade é o processo em si mesmo, os encadeamentos, nada além disso. Da mesma forma que no conto "a esfinge sem segredo" de Oscar Wilde, nada se esconde por trás dos olhos misteriosos daquela mulher, a não ser o esforço para se criar a impressão de algo por trás, ou seja, só existe o processo em si mesmo. Embora operem de modos diferentes, Deleuze, com sua ontologia, e Lacan, com sua linguística alternativa, ambos enxergam o signo como um campo de possibilidades e não como uma ponte que descreve coisas pelo caminho, numa espécie de correspondência.


Assim como na atitude genealógica, o desconforto faz também parte das associações livres, o que é esperado, já que, no processo, a conveniência da linguagem é quebrada, assim como toda uma série de estratégias confortáveis a serviço do "Ego". Nesse cenário, nessa atmosfera bem nietzschiana, criação e angústia andam lado a lado, sendo impossível pensar em uma sem entender a outra. A angústia isolada é niilismo, um esforço vazio; a criação isolada, por outro lado, é um caos. Essas duas esferas fazem parte de um mesmo universo, da mesma maneira que Dionisio, o deus do excesso, e Apolo, o deus da forma, também não conseguem viver separados, ao menos no "Nascimento da Tragédia". Nada melhor que uma linguagem capaz de trazer consigo essa dança, esse ritmo, nada melhor que uma profunda genealogia, nada melhor do que uma nova abordagem sociológica.


Referência da Imagem:


http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/09/funcao-social-da-psicanalise.html



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