O que é a linguagem? Esta palavra fixa a atenção de filósofos e linguistas há bastante tempo. Na verdade, penso que todo mundo em algum momento já deve ter refletido sobre esse fenômeno fascinante. Quando nascemos, somos inseridos no mundo com o potencial, mas sem o domínio das linguagens, embora exista a hipótese de que há noções inatas, ‘instintivas’. Mas logo começamos a desenvolvê-las a partir da vivência social e da prática criativa. Identificar somente a língua falada e escrita como linguagem seria bastante limitador, então talvez seja melhor falar de ‘linguagens’, como ramos de uma mesma árvore, cuja raiz se aprofunda no tempo. Mas e se pudéssemos estender a metáfora da árvore linguística para além de nossa espécie, que novos insights e reflexões poderiam surgir?
Tradicionalmente, é através dos discursos acadêmicos e abstratos que se busca limitar ou definir o que é ou não linguagem. Segundo a perspectiva mais aceita, a linguagem é tida como um fenômeno estritamente humano, sustentando a ideia de que nosso sistema de comunicação e tradução do pensamento é tão complexo, singular e sem precedentes, que merece ter um conceito próprio. Contudo, será mesmo que fenômenos como a conversa dos músicos através do som de seus instrumentos; ou dançarinos movimentando-se com seus corpos no espaço-tempo; ou o canto de pássaros ao amanhecer; ou o rugido de um tigre; ou os sinais químicos entre células e bactérias não possuem entre si algo em comum? E se a linguagem fosse compreendida a partir de um caráter tradutor e orgânico do ser aos seus estímulos? Pois todos os viventes neste planeta não traduzem seus impulsos (e são traduzidos pelos seus ambientes) a partir da capacidade de que dispõem?
Observar a linguagem como um fenômeno abrangente não implica supor uma ‘tabula rasa’ entre todos os seres, ou admitir que todos possuem as mesmas capacidades de que dispomos. Afinal de contas, cada forma de vida possui sua particularidade e sendo assim, como humanos, possuímos características (biológicas, neurológicas, psicológicas, sociais) que nos tornam singulares nas nossas capacidades de tradução. Da mesma maneira, cada ser (não-humano) também possui, em sua singularidade, um potencial de tradução de seus impulsos, desejos, influências condicionado pelos meios de que dispõe - e a esta ‘habilidade-condição’ intrínseca à vida chamo de linguagem.
Observar a tradução dos corpos em seus ambientes e configurações únicas requer admitir o aspecto histórico das mutações, dos movimentos de diferenciação e variação - isto é, as coisas mudam ao longo do tempo. Não entrarei aqui na questão sobre se há ou não evolução, já que me parece mais coerente falar de um movimento de complexificação e mutação, sem necessitar de um ‘valor de melhoramento’ associado à ideia evolutiva.
Na dinâmica da vida, a própria linguagem é limitada por forças que lhe são fundamentais. As crises, conflitos e contingências da existência garantem diversos momentos de ‘falha’ linguística, que precisam ser de alguma maneira superados através de novas estratégias. Assim, a criatividade e inovação se tornam essenciais às linguagens, na medida em que há uma troca constante entre o ‘ser-tradutor’ e o ambiente ao qual se insere, forçando a retradução, a recombinação de elementos e sentidos.
Ora, somos humanos e estamos habituados à dimensão conflituosa entre a existência e nossas possibilidades de linguagem. Como exemplo, basta observar como nos esforçamos, na linguagem falada coloquial, para traduzir impulsos subjetivos que provavelmente serão absorvidos superficialmente pelos nossos interlocutores. Nessas ocasiões necessitamos de um esforço incisivo para verter o ‘pensamento-emoção’ em enunciados que possam afetar o outro de forma a criar em seu panorama de pensamento-emoção algo semanticamente parecido com o que motivou a enunciação. É curioso pensar sobre essa falta da aparente transparência e eficiência da linguagem, não?
Sem dúvida a nossa espécie possui uma complexidade linguística singular que não encontramos em outros seres, contudo isso não deve dissociar os fenômenos de modo a nos considerar exclusivos no uso da própria palavra “linguagem”. Isto porque quando o termo é referido como sendo próprio da produção de sentido somente do ser humano, este torna-se o paradigma contra o qual analisamos todas as outras formas de tradução e comunicação não-humana. Dessa forma a transição entre mera comunicação e ‘linguagem’ emerge como um problema persistente e de difícil resolução, ou seja, mais uma dicotomia formal que satura a reflexão humana sobre si no mundo.
Mas independente de como possamos conjecturar a totalidade do fenômeno da linguagem, qualquer tentativa que se faça para descrevê-la falhará. Nesse sentido, este texto falha em traduzir da realidade o fenômeno da linguagem. A noção pressuposta aqui é a da irredutibilidade dos fenômenos aos esforços descritivos da linguagem humana. Somos acostumados ao uso pragmático da linguagem, no qual associamos as palavras aos fenômenos (concretos ou abstratos) aos quais se referem sem perceber o salto que esta ação pressupõe, pois os códigos são ferramentas de tradução e não os fenômenos em si mesmos. A palavra pode ter função pragmática, mas sempre aponta para fora, para algo além de si (talvez não se aplique ao caso metalinguístico).
O sentido do mundo não se encontra nas linhas, mas além e independente delas. Esquecemos que a linguagem é uma criação em movimento, uma ferramenta que simultaneamente projetamos e utilizamos. Dessa forma, como podemos esperar descrever qualquer coisa que seja de maneira definitiva? A realidade não admite tal contenção, tamanha totalização. Nenhuma teoria científica ou enunciação poderia esperar abraçar a totalidade da existência de qualquer fenômeno que seja, e nem precisa disso.
A própria existência da arte, da poesia e da beleza estética em geral sugere este caráter extra-linguístico ao qual não podemos esperar conter em palavra. Ao longo dos séculos em que produzimos e traduzimos pensamentos e emoções, muitos tentam encontrar maneiras mais honestas de se utilizar a linguagem. Formas que sejam mais lúcidas por não pretenderem totalizar, universalizar dentro de termos estritos. Parece que a linguagem humana se torna cada vez mais sincera à medida em que é compartilhada, socializada. Já que as linguagens são produzidas socialmente, em redes dinâmicas, um indivíduo somente é uma perspectiva única que oferece ao conjunto sua contribuição, e assim permite reverberar novos afetos e conflitos (produtivos) nos seus pares.
Em meio a esses pensamentos, fica fácil perceber a complexidade da questão. A discussão é rica, densa e interminável. Pode ser abordada em algum nível por quase toda faceta do conhecimento, e ainda assim o fenômeno se excede. Talvez haja alguma ironia fundamental no universo, que se expressa sempre nesse excesso que nos ronda por todos os lados. Fingimos que ele não existe, que o compreendemos, prevemos e ultrapassamos. Mas nossa linguagem, tradução em movimento, nunca produzirá síntese perfeita do pensamento-emoção, nem da expansão complexa do ‘outro’ cósmico. É a garantia da continuidade das forças misteriosas que experimentamos, seja no pensamento estruturado e cultivado, seja na tradução rítmica de ‘sons interiores’ numa bateria, no poema que se estende entre a ideia e o sensível, ou nos elementos inebriantes e loucos de nossos sonhos. O desconhecido sempre será desconhecido, transbordando a palavra.
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