A contemporaneidade é um misto de reencantamento e desencantamento do mundo. Filmes, séries e livros de fantasia, super-heróis, bruxas, contos de fadas, crescimento de fraternidades e seitas místicas, neopaganismo e multiplicação de religiões monoteístas e politeístas, tudo isso faz parte de um retorno ao sagrado. Por outro lado, vivemos uma situação cada vez mais desesperançosa e conflituosa: o aumento de suicídio e depressão. Portanto, um século XXI marcado por dualidades que ora se aproximam ora se excluem.
Desde o nascimento da dessacralização do mundo, a partir do século XV, provavelmente até um pouco antes, a ciência buscou explicar o mundo através de demonstrações empíricas, repetições, experiências e objetividades, relegando crenças e dogmas religiosos aos confins do âmbito subjetivo. Na vida pública, na esfera social, a religião perdeu seu espaço. Não havia mais lugar a um telos na história e nem concepções fantasiosas que expliquem porque os seres humanos vivem ou para onde vão, mas, sim, a demonstração do que está aí, do fato em si, que é propriamente as ações humanas em sua concretude, nas próprias experiências ordinárias. A morte de Deus na modernidade, parafraseando Nietzsche, pode ser lida como uma desmitificação do mundo em favor de uma racionalização científica/tecninista, e o deslocamento de uma concepção holística de mundo para o antropocentrismo calcado na racionalidade, fundamentada inclusive pela filosofia.
Em paralelo, junto com a morte de Deus vieram outras formas de olhar a realidade, através das várias teleologias da história, utopias ateístas de um paraíso terrestre, onde reinaria a igualdade social e a completa liberdade dos homens para agirem conforme seus desejos. No entanto, essas narrativas de um mundo terreno melhor, substituindo os encantamentos de outro além, ou as buscas de terras encantadas perdidas, como Eldorado e Atlântida, levou a humanidade a muitos sofrimentos, sobretudo porque não hesitou substituir pessoas de carne e osso por ideias, conceitos, ideologias criadas visando minimizar o sofrimento individual.
Grandes mentes modernas desenvolveram metas-teorias que visavam uma humanidade regenerada, um marco zero, um renascimento, o começo de uma nova história.
Contudo, as experiências do século XX, com as guerras e conflitos armados por todo o globo, com uso da ciência avançada nas mais cruéis formas de subordinação, humilhação, sofrimento e degradação da dignidade humana, só serviu para reduzir e desacreditar as narrativas da era moderna, que pensou um novo mundo dessacralizado e humanizado pelo canto da sereia da hiperacionalização e do progresso da sociedade. O desenvolvimento do capitalismo tardio e a mercantilização da vida uniu forças com uma sociedade sem alma, sem subjetividade, sem esperanças, sem futuro, vivendo uma era de xenofobia, racismo, sexismo humilhações, moralismos e fobias extremistas. Daí que socialismos, nazismos e fascismos impuseram suas ideologias para dar uma nova direção ao mundo, a ferro e fogo, pelo medo e pela arma. O totalitarismo é o sintoma de uma sociedade destituída de uma marcha pré - determinada.
Pouco antes da segunda metade do século XX, filósofos e cientistas sociais já detectavam esse ar vazio existencial radicalizado pela máxima do homem como medida de todas as coisas, por considerarem que as grandes narrativas materialistas perderam seus encantos; concomitantemente, valores sociais, estéticos, políticos acabaram sendo ressignificados. O resultado das guerras criou também novas ditaduras políticas mundo afora. Claro que essas mudanças não foram uniformes, sendo mais acentuadas em determinadas regiões do planeta. A América Latina também passou pelas suas ideologias de salvacionismo, progresso e discursos que preconizavam o fim da desigualdade ou, para outros, a esperança de um futuro mais harmônico, moderno e tecnocrático.
A década de 60, do século passado, foi um marco importante: o florescimento de movimentos sociais e culturais nos EUA, e uma parte da Europa, que pregavam o ressurgimento de práticas esotéricas, neo age, holismo, panteísmo, e filosofias orientais que conduziam a harmonia e a integração com a natureza e o próprio indivíduo. Há um deslocamento da razão por um caminho mais descentralizado; nesse processo, houve também uma forte crítica a ciência ortodoxa, considerada indiferente quanto às questões éticas.
Surgiram muitas lutas e manifestações contra o racismo, apartheid, xenofobia, neocolonialismo e degradação da natureza. Esses movimentos foram estendidos também a arte, através de música, literatura e cinematografia, vide as novas narrativas fantásticas, impulsionadas pelos EUA, como super-heróis, deuses, extraterrestres. Porém esse movimento coexistiu com a enorme ascensão da ciência/indústria/tecnologia utilizando “ideologias do desejo compulsivo”, a chamada indústria cultural, de que para ser feliz é preciso ter automóvel, um corpo esbelto, utensílios estéticos, equipamentos altamente desenvolvidos que proporcionariam prazer e preenchimento do tempo. É o fenômeno da colonização da razão pelo mercado e suas promessas, ou o que o filósofo brasileiro Pondé chama de marketing existencial.
As promessas do marketing existencial nada mais é do que um véu ou uma cortina de fumaça que visa minimizar ou esconder o vazio e a falta de rota para a vida. No limite, os indivíduos deixam de pensar em si mesmos e sobre o mundo, de modo a viver conforme os ditames impostos pelas propagandas e fórmulas artificiais e passageiras de felicidade. Em consequência desse processo frágil, da busca de preenchimento interior contemporâneo, a doença que mais desespera a humanidade neste século XXI é a depressão.
Por outro lado, países em que a violência, a pobreza e a desigualdade são bastante acentuadas, têm aumentado o número de fiéis religiosos, muito por conta da necessidade de apegar-se a algo que dê algum sentido a uma vida miserável. Mas, quando os indivíduos perdem a referência que a religião sempre deu às suas vidas, não conseguem por si mesmos lidar com a dureza e o sofrimento do dia a dia. No Brasil, por exemplo, apesar de ter crescido o número de religiões evangélicas, também aumentou o número de suicídios: Em 2011, foram 10.490 mortes: 5,3 a cada 100 mil habitantes. No ano de 2015, o número chegou a 11.736: 5,7 a cada 100 mil. Esses dados são do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM).
Em suma, vivemos, portanto, uma era em que há, claramente, uma disputa: um reencantamento do mundo (vide a religiões ocidentais e orientais, as novas filosofias místicas misturadas com novas teorias físicas da consciência, nos filmes e livros sobre heróis, deuses e poderes sobre-humanos) e, por outro, um desencantamento provocado pelo tédio, pelo hiperprodutivismo, narcisismo e hedonismo exagerado e consumismo desenfreado.
Até a próxima!