Como falar de uma linguagem imanente, fluida, descentrada, como colocar em papel toda aquela natureza de Espinoza, todo aquele fluxo nietzschiano, todo aquele devir deleuziano, ou seja, como trabalhar com uma coisa que não pode ser representada, que não é propriamente um conteúdo, um “fato”, mas sim uma forma, um movimento? Por conta desse detalhe, o ensaio é o melhor modo de trazer à tona as contribuições dessa tradição alternativa, encabeçada por figuras como Bruno Latour, na sociologia, Tim Ingold, na antropologia, Doreen Masssey, na geografia, Nial Ferguson, na História, Manuel de Landa, na arquitetura e filosofia, dentre outros. Aquilo que é discutido nessas páginas, cada tema que brota dessas linhas, não se distingue da maneira como a linguagem é gerenciada, o modo como ela é tecida, assim como não se diferencia também do movimento da própria realidade.
A teoria social alternativa (T.S.A), diferente de tantas outras abordagens, segue Zaratustra em sua caminhada colina acima, sem olhar nunca para trás, nem mesmo por um instante, o que significa um compromisso maior com a experiência, com a prática, ao invés daquela busca ingênua nos bastidores, atrás de algo sólido, conveniente, talvez uma causalidade confortável. A linguagem é entendida em seus encadeamentos, não sendo uma correspondência com o mundo, uma ponte inocente, assim como o corpo é entendido no instante em que se desloca, sem ser também uma ponte rumo a algo mais “nobre”, como “estruturas”, “sistemas”, “cultura”, etc. O raciocínio que atravessa esse solo, como era de se esperar, entende que o maior aprendizado surge do exemplo, surge da forma como a experiência é vivida e a linguagem sustentada, sem que ninguém busque nada por trás, muito menos representações.
O nível de abertura existente nessa nova tendência, não é bem um tema dissolvido no corpo do texto, e sim o próprio texto ele mesmo, em seus agenciamentos, em seus percursos, desvios e contornos. O universo latouriano, por exemplo, nesse sentido, não é uma discussão sobre a teoria do ator rede, de uma hipótese descentrada, numa espécie de mergulho analítico qualquer; ele é, ao contrário, um modo de vida, uma mudança de postura por parte do próprio sociólogo, um traço que é visto não apenas no conteúdo do que é dito e feito, mas na própria forma desse “dizer” e desse “fazer”. Não é tanto algo da ordem do epistemológico, mas um percurso rumo a uma ontologia, ao menos aquela heideggeriana, em que a vivência é o critério decisivo. O que é vivido substitui o que é pensado, e a prática política desse sociólogo, ao invés de perder o foco, disperso numa “abertura de possibilidades”, começa, aos poucos, a ganhar potência, a se encher de vida, se espalhando por todos os espaços, invadindo cada “domínio” disponível, ao fugir sempre de qualquer traço transcendente ou transcendental.
Por onde se olha, não importa exatamente onde, um novo modo de experimentar o mundo ganha presença, sugerindo um contorno descentrado, fluido. Desde movimentos sociais, até teóricos acadêmicos, passando por poetas, arquitetos, jornalistas, pintores, dentre outros, é possível notar um traço diferente, quase como uma nova pincelada. Um novo conjunto de agenciamentos toma forma, ganha potência, disseminando a si mesmo pelos quatro cantos daquilo que chamam de sociedade. A linguagem muda, o corpo muda, além das relações que giram ao nosso redor;
As cores começam a se dispersar na tela, as notas na partitura, as palavras num ensaio... Tudo ganha uma direção imprevisível, embora sem perder a intensidade e o compromisso prático. No nascer de uma Teoria Social Alternativa (T.S.A), com os dois pés cravados em um solo descentrado, as coisas não se perdem numa confusão sem fim, como poderia imaginar algum nostálgico positivista. A quebra das famosas matrizes transcendentais, aquelas que enquadram cada centímetro da realidade, subordinando toda uma interpretação a um único conceito ou ideia, não impede o sociólogo de continuar criando, ao contrário, confere a ele uma abertura de 360º, permitindo que o mundo o invada, o afete, sem deixar que o orgulho e a pretensão destruam o excesso do Real, sua criatividade de fundo. Um Teórico Alternativo, assim como Pollock na pintura, deixa as marcas de seu dripping espalhados pelo papel, o que poderia soar como uma confusão de cores, sem sentido, algo que qualquer um poderia ter feito. Poderia, sem dúvida, mas não fez. Os encontros, em Espinoza, o fluxo, em Nietzsche, o rizoma, em Deleuze, a rede, em Latour, no fundo, não pretendem trazer nada de novo, nada de escondido, nada nos bastidores. Elas não são um background, mas sim um tecido que interconecta tudo, não estando atrás, mas entre as coisas, assim como a carne merleau-pontyniana é uma matriz compartilhada, sempre presente.
Os fios que compõe esse cenário não pedem por descoberta, mas por afecção, demandando uma postura mais modesta diante de um mundo em excesso, repleto de várias ontologias, não apenas uma isolada e autoritária. A realidade não para de exceder, não para de lançar flechas de sentido por tudo o que é canto, sem privilégio de quem quer que seja. Quem comanda essa realidade, qual seu predicado? Assim como o dasein heideggeriano, esse transbordamento é definido por sua indefinição, pelo contato espontâneo com uma paisagem muitas vezes dissonante, mas nem por isso menos bela. A flexibilidade dessa Teoria Social Alternativa (T.S.A), dessa nova trama de encontros, e os desvios que traz consigo, se contrasta com a pretensão “moderna” em ordenar tudo ao redor, em prever os contornos de cada corpo no mundo, assim como o espírito absoluto em Hegel cobre cada fresta do real com sua racionalidade. Nada escapa do sujeito pretensioso, aquele que sabe o que o mundo é e o que as coisas são, aquele que conhece o propósito definitivo do universo inteiro, aquele que perverteu a ex-istência heideggeriana com algum predicado conveniente.
O Teórico Alternativo, esse personagem kafkiano, indo muito além de qualquer teoria, não apenas descentra critérios analíticos, resgatados de alguma prateleira filosófica, como também, e acima de tudo, descentra a si mesmo. Com essa mudança de postura, é possível agora notar o quanto a realidade é muito maior do que nossos olhos humanos podem perceber, ou nossas mãos alcançar, fazendo de cada gesto um agregado de seres, objetos, encontros, cores, e não apenas um ponto perdido em um corte rígido, frio e pretensioso. O novo cientista das humanidades, ao contrário do que acontecia antes, não é mais a medida de todas as coisas, nem mesmo enquanto simples observador distanciado; ao contrário, ele é um participante de um mesmo mundo, no mesmo espaço em que as coisas circulam, contribuindo assim para uma grande composição de vida.
A palavra continua ali, bem na esquina, espreitando, embora mais modesta, sendo facilmente implodida conforme o impacto do real. O signo perde seu papel de ponte, de intermediário, de um simples veículo de transmissão de algo dado, evidente, ou mesmo em potência, disponível nos bastidores. A palavra é um potencializador de encontros, ao invés de um obstáculo ao que existe, criando brechas, linhas de fuga, e uma série de virtualidades prestes a explodir, ao mesmo tempo que garante a criatividade, a mudança, o diálogo. Ele não mais perverte a ontologia, predicando seus traços, mas garante sua própria abertura, sendo um cruzamento de mundos, sejam eles humanos ou não. Quem é você agora cientista das humanidades, senão um traço numa tela, ao lado de outros traços, círculos, triângulos, borrões, ou mesmo espaços em branco como numa pintura de Cézzane?
REFERÊNCIA DA IMAGEM
https://medium.com/@viniciustokue/quebrando-a-primeira-parede-da-ind%C3%BAstria-brasileira-de-vfx-31a7adcfd7c8