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Provavelmente, há muito passamos do limite


Juiz Federal Sérgio Moro. Fonte: Marcos de Paula

É do poeta romano Horácio (65 a.C. - 8 a.C.) a frase com que advertia seus contemporâneos, sobre os perigos dos excessos e a virtude da moderação: “Est modus in rebus”, disse o poeta – há um limite nas coisas. Indo mais além, essa sentença é um alerta pertinente quando alguma situação sai do controle e é preciso que as coisas voltem ao devido lugar. No entanto, se o próprio Horário ressurgisse hoje no Brasil, a sua constatação seria de que o vocábulo “limite” foi oficialmente revogado nas instituições brasileiras.


Não é de hoje¹ que venho alertando para a situação vergonha em que se encontram as instituições no país, notadamente o judiciário, ministério público e polícia federal e como elas têm contribuído para um mal-estar republicano. Já é mais do que uma impressão de que ocorre uma naturalização do atropelo a alguns princípios constitucionais, tornando o direito uma simples questão de vontade. A nova patuscada foi protagonizada por – adivinhem quem? – juiz Sérgio Moro e cia. Se não bastou o flagrante desrespeito aos princípios legais com que condenou o ex-presidente Lula, seu trofeuzinho de luxo, Moro, ao responder perante o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), quando indagado sobre a barafunda do dia 08 de agosto, quando descumpriu a ordem do desembargador Rogério Favreto – que havia mandado soltar o ex-presidente (com um argumento ordinário, diga-se de passagem) –, disse que (doravante, absurdos seguirão em negrito) “que estava diante de situação urgente e que cabia a mim, como juiz natural da ação penal e como autoridade apontada, ainda que erroneamente, como coatora, proferir a decisão acima transcrita”.


Ou seja, o golden boy da direita que chafurda na ignorância suína diz, sem cerimônia alguma, que, mesmo sabendo que não era a sua alçada negar o pedido do desembargador, o fez assim mesmo. Mas calma, fica pior. Ao embasar a sua decisão, o juiz afirma que o relator do caso, o desembargador Gebran Neto, “provavelmente revogaria a decisão no dia seguinte ao término do plantão, com o que ter-se-ia que restabelecer a prisão do condenado”. Provavelmente as excelências devem ter uma ligação astrológica, a ponto de um saber o que, provavelmente, o outro faria, mesmo sem consulta-lo. Muito provavelmente, se ambos fizessem algum teste do Buzzfeed para saber que dupla de amigos das telonas seriam, o resultado poderia dar Pedro e Bino, Salsicha e Scooby Doo, Debi e Loide...


Mas o absurdo pode ainda ir mais longe. Em tempos em que procuradores de maçãs rosadas, perfil longilíneo e óculos de aro fino ficam pedindo a cabeça de políticos por rede social (cadê a Tia Dodge para pôr esses meninos de castigo, hein?), o diretor da PF dá entrevista em jornal, assumindo platitudes sem qualquer cerimônia. Em entrevista publicada no dia 12 de agosto, o senhor Rogério Galloro admite o porquê (junto e com acento) de não cumprir a ordem de soltar Lula. Segue trecho:


Diante das divergências, decidimos fazer a nossa interpretação. Concluímos que iríamos cumprir a decisão do plantonista do TRF-4. Falei para o ministro Raul Jungmann (Segurança Pública): ‘Ministro, nós vamos soltar’. Em seguida, a (procuradora-geral da República) Raquel Dodge me ligou e disse que estava protocolando no STJ (Superior Tribunal de Justiça) contra a soltura. ‘E agora?’ Depois foi o (presidente do TRF-4) Thompson (Flores) quem nos ligou. ‘Eu estou determinando, não soltem’. O telefonema dele veio antes de expirar uma hora. Valeu o telefonema”.


Inaugura-se com esse caso, o surgimento de um novo instrumento jurídico: o embargo telefônico.


Não é preciso ser petista/de esquerda para chegar à conclusão de que há uma concertação para que Lula seja condenado e se mantenha na prisão, inclusive já tratei desse tema anteriormente. É muito provável, tanto quanto o Gebran Neto fizesse o que o juiz Moro achou que ele faria, que a claque petista – e boa parte de quem renunciou a reflexão em nome do proselitismo político, incluindo aí boa parcela da intelectualidade acadêmica – irá argumentar que se trata de um plano “dazelite” para que o “líder do povo” não seja presidente mais uma vez. Estranho, já que duvido que haja banqueiro ou empresário nesse país com mágoas de Lula. Então, como explicar o que aconteceu com o falecido reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo e vem acontecendo com os membros da comunidade acadêmica da UFSC?


Explico: há tentativa clara de facções de corporações estatais se assenhorearem do poder político, impondo goela abaixo do país as suas vontades e caprichos, valendo-se de uma importante pauta (combate à corrupção) para, em detrimento da norma legal, imperar o reino das (suas) vontades. A prisão preventiva se tornou o “armengue” da prisão sem prazo de vencer, ou alguém explica a razão de Eduardo Cunha estar em prisão preventiva desde 2016? Já a condução coercitiva virou um instrumento utilizado indiscriminadamente para acossar suspeitos e demonstrar claramente quem é o cachorro e quem é o poste e a delação premiada, o modus operandi para os pássaros cantarem a melodia desejada, não é mesmo, procurador Manoel Pastana?


E para a desilusão das carpideiras de esquerda, isso está acontecendo com todos, sejam políticos ou empresários. Não se trata de defender corruptos, mas sim defender o valioso legado do direito. Para que o combate às quadrilhas que fazem vida com o erário público, não me parece necessário raspar cabeça, acorrentar como um cachorro e pôr na solitária por capricho. Nem Cabral, nem os milhares de invisíveis do nosso medieval sistema carcerário, que pretos de tão pobres e pobres de tão pretos, sequer terão vez no debate público. Provavelmente seja mais produtivo aprimorar nossas leis, do que jogar tudo no lixo como estão fazendo ultimamente.


O que há de mais melancólico nisso tudo, é que nem adianta esperar que o famoso princípio da separação de poderes (consagrado pelo filósofo francês Montesquieu) – em que um poder vigia e controla o outro – atue. O que vejo hoje, salvo raríssimas exceções, há um completo “acoelhamento” do executivo e legislativo federais, envolvidos até as tampas com denúncias de corrupção. Depois de tentar apear na marra o presidente Temer – via flagrante armado – e aplicar medidas cautelares a um senador da república – sem autorização do Senado –, o que se percebe é o mais absoluto silêncio. E o silêncio se reproduz também nas candidaturas, exceto Ciro Gomes, que mencionou em tentar colocar as instituições de volta “pra caixinha” constitucional. Mas até mesmo os que falam em reforma política, não têm a coragem de tocar nesse assunto.


Em 1975, Mário Simonsen se dirigiu ao presidente Geisel para falar da prisão da professora Maria da Conceição Tavares, capturada subitamente pelo Exército. Geisel, após dar um murro na mesa, disse: "Não é contra ela, é contra mim". Horas depois, ela estava solta. Dois anos depois, ao receber a negativa do General Sylvio Frota de que não se demitiria do cargo de ministro do Exército, o então presidente Geisel sentenciou: “Bem, então vou demiti-lo. O cargo de ministro é meu (...). Se você não vai pedir demissão, vou exonerá-lo”. Estava desarmada a tentativa da “tigrada” de fazer retroceder o processo de volta à democracia, já em curso.


Não se trata aqui de ser uma nostalgia pelo regime militar, ou mesmo uma apologia velada ao “alemão”, muito pelo contrário. Ao relembrar, de propósito, essas passagens da biografia de Geisel, tento chamar atenção para o fato de que não é a primeira vez que instituições, que deveriam se ater ao estrito cumprimento da lei, se atiçam e passam a açambarcar o poder político para os seus próprios interesses. Também não é a primeira vez que, em nome de um imperativo nacional (combate ao comunismo em 64), instaura-se o “faço o que quero, porque quero”. Não se trata de traçar uma equivalência entre os facínoras de farda, com essa turma que resolveu brincar de fazer política com toga, mas sem um único voto. Contudo, em ambos os casos – atualmente e na ditadura até Geisel – há uma evidente anarquia institucional.


O filósofo Karl Marx, no 18 de Brumário de Luis Bonaparte, disse que a história se repetia, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Quando houve a tragédia, a mesma figura que ajudou a derrubar o presidente João Goulart e implantar uma ditadura que se mostrou anárquica, ajudou a desmonta-la. Os tempos são outros e o caminho de volta aos quartéis está interditado, por mais que os que possuem tesão por farda e coturno lamentem. Retomar o primado do poder político (civil), “enquadrar” constitucionalmente a tigrada “Nutella” e restabelecer o princípio republicano é principal tarefa da nossa elite política em 2019, tanto quanto o reequilíbrio nas contas públicas e encontrar um caminho virtuoso de desenvolvimento inclusivo. Resta saber quem serão os varões – e varoas – de Plutarco que se habilitarão a pôr fim na farsa em curso e restabelecer os limites a que nos aludiu Horário. A mim, só resta o realismo melancólico e ao mesmo tempo promissor de Fernando Pessoa:


Chegámos ao ponto em que colectivamente estamos fartos de tudo e individualmente fartos de estar fartos. Extraviámo-nos a tal ponto que devemos estar no bom caminho”.

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