Autor: Pedro Nabuco
Os tempos se estreitam, tudo parece urgente, perigoso e, ainda assim, banal. O que realmente nos espanta? O que tem a capacidade de nos tocar ao fundo? Falta tempo para refletir, motivos para ter esperança. Em todo lugar há um chamado para a luta e razões para matar, porém, pelo que vale a pena morrer? Ideais borbulham nas esquinas, falam em nome da esquerda, direita e do centro, como se dissessem tudo, mas, se dizem, é só para o espelho; não há lugar para o outro, senão como inimigo e culpado. São muitos os espaços de fala, mas raros os de diálogo e assim caminhamos, cada vez mais unidos em coros de uma nota só, recusando qualquer harmonia com o mundo.
O conflito é inflamado e de todos os lados são hasteadas as bandeiras do moralismo que não se cansa de acusar, sempre o outro, sempre o estrangeiro. Quem tem a audácia de enxergar a si, neste instante em que tudo é material de combate? De tanto atacar, vamos quedando por apenas nos defender. "Deus está morto", daí em diante cada um está livre para criar sua lei e ordenhar seu rebanho para dentro dela, mas não existem realmente leis, somente rebanhos; apenas estando dentro de um se pode tudo, desde que se atue em nome dos pares. A diferença entre razão e loucura é turva, quando não inútil.
Tudo é permitido e justificável, e como não haveria de ser? São os tempos que nos cercam e a ninguém é permitido fugir do próprio tempo. É possível não escolher um lado? A alguém é permitida a inocência e o sono tranquilo? Para ser coerente dentro deste turbilhão é preciso ter um lado, mas ter um lado custa caro, sendo que o preço a se pagar é estar contra todos os outros; assim, a coerência só combina com o rebanho. E se existem incoerências dentro do próprio rebanho, elas já não importam, pois, inimigo é quem está do lado de fora. Sem isto nos perdemos, sem isto não nos reconhecemos e nem somos reconhecidos e tudo se torna mais difícil, mais complexo, indefinível.
O conflito é, realmente, inevitável. Suas cores e sabores estão ao alvedrio da contingência, mas a luta humana carrega a marca da necessidade. Assim, mover-se impune dentro do conflito requer a inocência, mas não existem mais inocentes ou, se existem, são aqueles passivamente fieis à lei do rebanho e cegos à sua incoerência interna. Em tempos como este, em que a inocência é expurgada e deixada aos que não se movem, para viver com verdade é preciso abraçar a incoerência.
Ser incoerente e verdadeiro, eis o desafio daqueles que pretendem ir além dos rebanhos e da falsa moral. Aceitar o devir do mundo, a constância da mudança e das rotações permanentes que fazem tudo girar, esse desafio que parece somente ser possível de encarar sob o signo da loucura ou da solidão. De onde brotará uma ação veraz no mundo em que fatos não tem valor e egos gigantes como estrelas fazem com que tudo gravite em seu redor?
A linguagem “formal” parece incapaz de abarcar esta realidade, para que possa haver um diálogo. Aqui a solidão parece ser o meio de alcançar a coerência, viver cercado dos seus ou de ninguém, trazendo, talvez, a paz de um espírito íntegro. Entretanto, no mundo moderno a solidão ou é um privilégio ou um martírio, raramente uma opção viável de ser escolhida pelo humano comum. Sós ficamos então dentro de nós, por detrás da máscara social, só que esta máscara custa cada vez mais caro e toma cada vez mais espaços de paz. Mesmo mascarado é preciso agir. E agir é adentrar o conflito.
A única forma de linguagem que parece capaz de abarcar este conflito é a artística. Fluida e imprecisa, desvia dos melindres de fatos estáticos e move-se pelas vias dos sentimentos, tocando e despertando os sentidos adormecidos pelas leis de rebanho. Se não é possível falar em verdades, em coerências, que se comuniquem então sentimentos e suas potencialidades.
A “Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua” de Sergio Sampaio tem muito a dizer neste sentido. Em meio à confusão o poeta é alguém que ouve o que lhe dizem, que recebe as críticas e nomes que os outros decidem lhe pôr, sem intentar uma neutralidade, sem se defender e sem atacar... o poeta quer “brincar, botar pra gemer”. Meio louco, meio solitário, mas dentro da multidão, querendo “todo mundo nesse carnaval”.
Referência da imagem:
http://ociclorama.com/arte-coaching-para-artistas/