Talvez por ter sido uma conquista recente, muitos pensam na escrita como sendo algo frio, sem nenhum propósito a não ser a pura descrição, um tipo de registro de coisas que acontecem lá fora, ou até mesmo um catálogo de objetos, categorias e números. A palavra seria um tipo de ponte apenas, um recurso que revela informações, sem nem mesmo transbordar, muito menos “criar”. A criação sempre foi um privilégio dos mentirosos, ou dos romancistas, mas nunca daquele sujeito de humanas... não!! Nós aprendemos a buscar causas, culpados, tudo isso através de uma sequência alucinada de métodos, sempre garantindo a firmeza de um conhecimento bem direcionado. A nossa escrita, de preferência um artigo, sempre circula pelos campos da rigidez, buscando o contato direto, impessoal, sem nenhum traço estético, a não ser uma pura pretensão. Nós não temos jaleco branco, mas fazemos das nossas palavras jalecos, tecidos sem risco, sem mancha, sem nenhum traço inconveniente. Nosso jaleco branco é a linguagem, entendida aqui como uma máscara, nada mais do que uma fantasia usada para ocultar a natureza do próprio mundo.
Se a realidade é movimento, energia, corpo, complexidade, se ela traz contornos únicos, intensos, surpreendentes, por que a linguagem das Ciências Humanas não acompanha esse mesmo percurso? Por que tanta pretensão, tanta ilusão? Por que o artigo como estrutura de raciocínio, por que a cobrança de um compromisso com fatos, quando o critério decisivo sempre foi mais criativo?
Desde o século XVIII, com o iluminismo, temos um medo estranho de aproximar ciência e arte, como se fossem ímãs de polos opostos, sempre repelindo seu contrário, num tipo de conflito sem fim. Quando a arte aparece na ciência, como nas humanas, acaba sendo apenas um objeto de análise, um simples suporte para a aplicação de uma teoria... nada mais!!!. Sem respirar, a arte vê a si mesma sufocada por conceitos, critérios, categorias, e tantas outras manobras científicas, além, claro, das toneladas de métodos que sobrecarregam os ombros de qualquer um.
A escrita não é bem o forte das humanas, já que a nossa linguagem não carrega a característica que define o próprio mundo, ou seja, seu movimento, sua energia. Nossa escrita é sem graça, rígida, pretensiosa, o que nada tem a ver com a vida, com o que realmente acontece. Criamos uma máscara estranha, uma fantasia perfeita, ao mesmo tempo uma linguagem que tudo explica, numa facilidade assustadora. Tudo parece ser capturado pelos meus signos, sem deixar um traço sequer de surpresa, de potência, de autonomia. A escrita das humanas é pretensiosa, simplificada, linear, dualista, sendo que o próprio mundo não é assim, muito pelo contrário.
Tudo tem um sentido claro na escrita das humanas, mas o mundo não segue uma trajetória assim, tão previsível. Tudo é “certo” ou “errado” na escrita das humanas, mas o mundo não é dessa forma, tão binário. Tudo é estrutura ou sistema na escrita das humanas, mas o mundo é muito mais, muito mais do que uma matriz rígida em que tudo gira em torno. Felizmente esse mesmo mundo não é uma simples projeção da minha linguagem, mas é algo vivo, muito maior do que eu, muito maior do que o meu “eu”. Quem sabe não existe uma forma de linguagem mais fiel, mais eficaz, mais interessante, algum tipo de estratégia que resgate aquilo que foi perdido em séculos de uma ciência pretensiosa?
Muito além desse modelo tradicional, pretensioso, o ensaio, ao contrário, garante outro ritmo, uma forma de entender a escrita como movimento, como energia, como criação, ao invés de ser apenas uma ponte inocente e descritiva. O ensaio, ao carregar os contornos do próprio mundo, tem vitalidade, um tipo de potencial difícil de descrever, já que está além da representação, ou seja, é impossível de nomear!! O ensaio não descreve coisas, mas acompanha a energia do próprio mundo, seguindo um percurso criativo. Se um artigo bom é aquele que descreve melhor as coisas, um ensaio bom, por outro lado, é aquele que carrega dentro de si ricas associações, insights inesperados, contornos ousados, cheiros inesquecíveis. Já sentiu um cheiro de um ensaio? Não??!!! Sério?! Que tal experimentar um pouco de Montaigne, acompanhado com algumas porções de William James, temperado com alguns toques de Latour? Sentiu o cheiro? Note a intensidade com que as palavras são costuradas, observe como elas o envolve, mesmo que seja contra sua própria vontade. De qualquer forma, não resista, deixa as coisas fluírem, deixe com as palavras se conectem de forma leve, quase como numa análise, em que as associações são livres, espontâneas, ainda que arriscadas. Não tenha medo, por favor... não tenha medo mesmo quando um corpo estranho brotar dos seus verbos, substantivos, etc. O que é esse corpo?- Pergunta você. Advinhe!!! É o seu próprio corpo, suas experiências, mas aquelas que normalmente você não quer ver, aquelas que mancham o tecido branco, puro, do seu querido jaleco.
Referência da Imagem:
http://expansaors.com.br/universidade-feevale-lanca-especializacao-em-escrita-criativa/