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Foto do escritorEquipe Soteroprosa

Ex-Passo: Itinerância poética na ressignificação do espaço público.


Contemplar o pôr-do-sol é uma prática cada vez mais assídua para muitas pessoas em Salvador. Agora imagine, além de poder apreciar o espetáculo da natureza, ainda vivenciar a experiência de assistir gratuitamente a uma apresentação de dança na praia? É isso que a União Instável Criações está realizando em Ex-Passo.


No encontro de céu e mar e no vai e vem das águas, somos convidados a um redimensionamento do olhar e da percepção do espaço urbano. Pertencimento e interação. Transmutação do ambiente natural e público em espaço de reflexão e fruição estética. A praia como uma extensão da própria expressão artística.

Ex-passo surgiu em 2008, a partir de estudos e experimentos entre dança contemporânea e técnica circense de pernas de pau. Trabalho criado pelo ator, dançarino e diretor Claudio Machado, em parceria com a coreógrafa Líria Morays. Dez anos depois o projeto ganha novo fôlego ao utilizar o mar e a areia da praia como espaço cênico. Em cena, Machado uniu-se à dançarina Clara Garcia e aos dançarinos João Rafael Neto e Matias Santiago.


Segundo Machado, a intervenção artística tem como objetivo construir uma linguagem que seja singular e acessível ao público.


A obra ressignifica o espaço da praia, um dos espaços públicos mais democráticos de nossa cidade, ao propor uma performance coreográfica que tem como elemento principal, em sua composição, a itinerância.


Quatro dançarinos com suas experiências se encontram sobre a areia da praia e se relacionam, traduzindo por meio dos seus corpos, movimentos que nos conduzem a repensar sobre nosso convívio com a natureza ao redimensionar o espaço no qual interagimos durante a apresentação. Desafiam-se na busca pelo equilíbrio em cima das pernas de pau sobre a areia. Um jogo imagético fluido, repleto de força, vigor e dinamismo poético nos incita, à medida que a ação vai se desenvolvendo, a fazer também parte dessa aventura.


Machado assevera que o exercício proposto no espetáculo é uma criação colaborativa entre os intérpretes e se constitui como uma forma de reativar esse olhar poético para um espaço que de uma certa maneira já está banalizado pelo efeito da rotina.


Clara Garcia pondera a respeito desse olhar “embotado”: “Acho que o espetáculo tem camadas, porque talvez esteja ligado a um olhar para o mar místico, um olhar ritual, mas claro que no dia a dia, as pessoas não olham mais assim. É preciso recuperar essa contemplação da natureza e reparar mais nas sutilezas que são despercebidas. É preciso tomar consciência desse tempo”.


Quando eu soube do projeto, ao fazer um simples exercício de análise sobre o título, eu fiquei divagando que Ex-Passo tem a ver com o espaço redimensionado, o espaço é reinventado, reinserido em um outro contexto. E tem a ver com o passo de dança reformulado, que já não é mais o mesmo, um passo transformado.


Sobre a origem do título, Machado afirma que surgiu com um jogo de palavras com a relação do passo da perna de pau: “Essa dilatação que a perna de pau trazia, a gente queria chamar a atenção para isso. Que levasse a atenção do público para esse foco da dilatação da perna, uma possibilidade de extensão. Quando a gente criou a gente pensou muito nessa ideia da perna como extensão do próprio corpo.” E complementa: “E tinha essa brincadeira que ao mesmo tempo falava da sonoridade traz para a relação com o lugar, com esse deslocamento com o espaço. É um espaço que deixa de ser. É entre o que é e o que não é e o que deixou de ser, o que era. Tem essa relação de tempo também no nome. Isso é uma coisa no presente ou no passado. O que a gente está falando? Que tempo é esse? Como se disséssemos: Olhe também para o espaço onde isso está acontecendo. Isso foi um dos motivos que me fizeram vir para a praia [...]”.


Matias Santiago reitera que Ex-Passo “é um espetáculo que tem vários artifícios de atração para o público. Primeiro por sair de um espaço convencional de ver dança e ir para um espaço público onde a população da cidade transita, vive e convive, que é a praia. Isso para mim é fundamental, essa interação da dança com a cidade. E o que pode atrair o público também é essa extensão do corpo através da perna de pau e essa curiosidade que o espetáculo gera. Como é que bailarinos se deslocam com perna de pau na areia da praia? Para mim é uma experiência maravilhosa dançar nesse espetáculo. Acho que a gente conseguiu traduzir de uma maneira poética”.


E como sempre me compraz compartilhar com você, leitor, as minhas impressões, segue algumas associações e imagens que surgiram do meu imaginário. Deixo claro que, apesar de ter um caráter de análise narrativa, são interpretações e associações livres que fiz somadas às descrições da ação de apenas alguns trechos de cenas (para deleitar-se com toda a obra ainda dá tempo de assistir porque continua em cartaz. Ver serviço logo abaixo).


Ao assistir eu mergulhei sem medo nesse universo e fui fisgado. Início do espetáculo. Primeira cena. A trilha sonora assinada por Jarbas Bittencourt – um espetáculo à parte – é pontuada com um ritmo que nos remete ao tempo. Cada um segura um bastão. Movimentos pendulares são executados pelos intérpretes que estão dispostos um em frente ao outro formando, entre si, linhas paralelas e, no conjunto, desenha-se imaginariamente um quadrado.


O desenho desses corpos em movimento, na composição, junto com os bastões, sinuosamente se harmoniza com o ritmo do mar, o vai e vem característicos das ondas. O que me fez refletir sobre a relação entre o tempo concreto, real, o tempo da duração das horas (cronológico) e o tempo da própria natureza; o tempo cósmico com o tempo interno. Kairós, que na mitologia grega é o deus do tempo oportuno e Cronos, o grande deus do tempo inexpugnável que rege os destinos e a tudo devora. O espetáculo parece afirmar a possibilidade da existência desses vários tempos que se imbricam e nos produz.


Existe um lugar fixo para cada dançarino, mas à medida que o espetáculo vai se desenvolvendo eles começam a se movimentar e a criação desses deslocamentos no espaço produz uma intervenção que nos atravessa. Saem da configuração padronizada e, paulatinamente passam a ter uma certa autonomia. O ato de mover-se gera a transformação da existência da mesma forma que a própria natureza se metamorfoseia.


Na cena 2, a dançarina está presa na areia fixada nas pernas de pau. Remete a relação entre o real, o sonho e o devaneio. Uma reflexão sobre o presente em direção ao futuro. Presa no tempo, ela luta por conseguir um reequilíbrio. A trilha com efeito reverso reforça essa relação de um tempo que retrocede para prosseguir. A imagem lembra um scanner como se ela estivesse sendo controlada. Ela tenta subverter esses tempos com sua criação e vigor. E se liberta, se reconecta com o momento presente.


Duo do casal. No duo já percebemos uma certa harmonia entre eles. A busca por autonomia e equilíbrio entre o movimento interno dos corpos e o movimento externo do ambiente, o ir e vir das ondas, a relação da agua com o sangue fluindo nas veias, o calor do sol e o calor do corpo, uma energia pulsante e a relação entre eles dois. A relação entre masculino e feminino tentando se adequar na junção dos corpos. O público é testemunha desse diálogo. Uma interação do ser humano com a sua própria natureza. O ar que nos alimenta. A pulsação dos corpos.


Eles formam novamente um quarteto integrado ao mar. Inicia-se nesse instante uma das cenas mais belas do espetáculo, em minha opinião. Uma cena que vai iluminando-se. Produz um efeito feérico. Há momentos de reverência dos corpos ao mar. Um reconhecimento da relação estabelecida entre eles. Momento de conexão e consciência coletiva dos corpos integrados à natureza. O exercício do olhar vai sendo ampliado e os dançarinos fazem um convite ao público: mergulhar na fantasia proposta na cena numa atmosfera de sonho e repleta de efeitos que nos conduz a uma relação de reflexão num tempo outro. Esse despertar provoca uma reversão do olhar para observar o imaginário por um outro ângulo.


Em determinada cena, cada um espia o público como se estivesse convidando a mergulhar no mar do imaginário, a mergulhar na busca da consciência, da relação, interação e integração do ser humano com a natureza, da relação ambígua e ambivalente entre masculino e feminino, do particular com o universal, da parte com o todo e eles vão fluindo cada qual no seu tempo, vão voltando para o mar. O que me faz lembrar de seres mitológicos que se aglomeram, se dissolvem e se misturam com os próprios elementos da água.


O público não entra no mar, mas nós usamos a nossa imaginação para segui-los como se pudéssemos afirmar que é preciso estar atento e forte e que, no fluxo do ir e vir da própria natureza, existe uma relação que é fluida, mas que tem uma resistência, uma luta e um equilíbrio que está sempre buscando um ponto, um eixo e está se reequilibrando o tempo todo. Nada é estático, tudo está em movimento. A dinâmica do universo é integrada.


A interação dos corpos na praia produz um efeito na fruição do público que faz com que ele saia do padrão habitual, pois ele vê outras pessoas dançando, ou seja, são corpos em movimento, uma estética que produz uma ampliação da percepção e um novo exercício que conduz esses olhares ao imaginário de cada um indo do individual ao coletivo.


Diante dos momentos de crise e incerteza em que vivemos atualmente é como se fosse um chamamento à reconexão com nossa criança interior e a capacidade de esperançar, com nossa ludicidade e poesia, de um congraçamento universal entre homem e natureza. E nesse chamado-contemplação, nos sentimos fortalecidos para continuar expressando nossa arte e nos conscientizarmos, ainda mais, da importância do nosso fazer artístico, da potência criativa como um elemento fundamental para o desenvolvimento de nossa humanização.



CRÉDITO DA IMAGEM: Luisa Caria.



SERVIÇO:


Ex-Passo

Quartas e quintas de novembro

21 e 22 – Praia da Paciência – Rio Vermelho

28 e 29 – Praia de Itapuã – Rua da Música (Rua K)

Horário: 17:30

Classificação: Livre

Gratuito


FICHA TÉCNICA


Direção e concepção coreográfica: Claudio Machado | Criação colaborativa com os intérpretes-criadores: Clara Garcia, Claudio Machado, João Rafael Neto e Matias Santiago | Assistência de criação: Clara Garcia | Música original: Jarbas Bittencourt | Sonorização: Colibri Criações Musicais | Operação de som: Caio Andrade| Iluminação: Fred Alvin | Figurino: Rino Carvalho |Costura e assistência de figurino: Angélica Paixão | Produção: Ramona Gayão | Assistência de produção: Ronaldo Magalhães |Designer e imagens de divulgação: Luisa Caria | Assessoria de comunicação: Biz Comunicação | Realização: União Instável Criações.

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