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A FANTASIA NO TEATRO E O CORPO QUE DERRAMA PELOS CANTOS: O ESPETÁCULO ARRAIAL

O "Arraial", baseado na obra “Antônio Conselheiro”, de Joaquim Cardozo, é uma peça que conta a história da formação e queda de Canudos, remontando seus passos, embora de um jeito diferente. Seu percurso, ainda que histórico, beira o realismo fantástico, com seus dragões, demônios e outras tantas criaturas estranhas que rondam a narrativa. Como qualquer história desse gênero, até mesmo na literatura com Kafka e Gabriel García Márquez, a fantasia não vale por si mesma, numa espécie de entretenimento qualquer, como acontece em filmes blockbusters, aqueles com super-heróis, ou naquela literatura de consumo, mas ela é sempre uma ponte conectada à realidade, criando canais de acesso ao mundo, ao garantir a reflexão sobre o que acontece. Por mais estranho que pareça, a fantasia acaba sendo mais real do que a própria realidade, já que realça detalhes importantes do próprio mundo, ao invés de se perder em um caos de sentido, um fluxo sem rumo.


Mesmo introduzindo elementos fantásticos, ou melhor, principalmente por isso, a peça consegue passar uma mensagem importante, sempre de uma forma direta, espontânea, impactante. O sentido é muito bem balanceado, não sendo nem óbvio, nem obscuro. A mensagem salta do corpo dos personagens, com uma leveza, com uma espontaneidade fora do normal, com exceção de alguns atores cujas performances deixaram um pouco a desejar, mas nada que comprometesse o ritmo da peça como um todo. Além disso, esse mesmo sentido consegue também balancear dimensões temporais, como o passado e o presente, criando assim uma ponte com os nossos recentes debates políticos, sem perder de vista, claro, suas raízes histórias e a consistência do que é narrado. Tudo colabora dentro de uma mesma moldura, fazendo com que todos participem do fluxo de atuações, inclusive o próprio público. Sobre essa participação, a forma como o palco foi organizado fez da plateia não apenas uma espectadora distante, como é de costume, mas participantes daquela série de eventos. A performance acontecia no centro, enquanto o público, também no palco, ocupava duas fileiras laterais, feitas no formato de uma mini-arquibancada. Tijolos de verdade faziam parte do piso, além de um pouco de areia espalhada por toda parte, tudo isso na tentativa de criar os contornos do nosso sertão, resgatando um pouco o peso da vida do nordestino e da sua resistência. A peça, ao não falar apenas de canudos, resgata também esse heroísmo diário, essa luta cotidiana, muitas vezes um tipo de mistura entre desespero e fé. Em alguns instantes a história salta de canudos e invade a casa dos homens e mulheres do século XXI, fazendo ressoar experiências equivalentes, mesmo que separadas por mais de cem anos.


A performance dos atores realça o aspecto fantástico da trama, com seus gestos exagerados, quase musicais, e isso sem perder a parte concreta, material, da narrativa, sendo uma espécie de mistura entre ilusão e realidade. Ao fazer do próprio corpo um prolongamento do realismo fantástico, os gestos ganham mais sentido, estando dentro de um todo que chamamos de peça, ao invés de ser fragmentado em milhões de pedaços. Cada gesto não é solto, desgarrado, mas se conecta com todos os outros, principalmente aqueles dos demais personagens, formando, no final, uma pintura interessante de ser vista, ou melhor, de ser sentida. A própria figura do general, ao contrário do que muitos podem pensar, não quebra o lado fantástico da história, mas cria um contraste interessante, um pano de fundo que realça ainda mais os “absurdos” da trama. A sua “normalidade” é um convite para que a fantasia brote das cenas, uma ponte importante.


O contato com a narrativa, portanto, não é conceitual, teórico, como acontece nas aulas de história no ensino médio, mas sim espontâneo, direto, envolvendo o resgate de um pacote de experiências. Mesmo passagens que podem não ser entendidas, por conta de alguma falta de conhecimento histórico, ainda assim continuam comunicando, já que a performance dos atores, assim como o cenário, contribuem para isso.


Referência da imagem:


http://atarde.uol.com.br/cultura/teatro/noticias/1975920-espetaculo-inspirado-na-guerra-de-canudos-estreia-nesta-quinta



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