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POR QUE TROQUEI A SOCIOLOGIA PELA PSICANÁLISE?



Primeiro dia de aula, a ansiedade te consome, os pensamentos saem do controle, seguindo um ritmo alucinado. A noite foi difícil, já que você mal conseguiu dormir, ansioso com a chegada do grande dia, do grande momento, da estreia no curso de Ciências Sociais. Enfim, o sol aparece no horizonte e os primeiros raios de luz batem na sua janela, como se fossem gotas de chuva, anunciando algo novo, algo difícil até de nomear. A expectativa é fora do normal, já que os boatos são incríveis, estimulantes, coisa de outro mundo. Ao longo dos anos, dos comentários de corredor, dos vídeos assistidos, das referências soltas, uma imagem foi gerada em sua cabeça, uma imagem do curso de Ciências Sociais como sendo alguma coisa impressionante, um objeto especial acompanhado dos melhores adjetivos: “crítico”, “reflexivo”, “revolucionário”, etc, um tipo de repertório muito além do dia-a-dia do sujeito comum, ainda preso no cotidiano e nas suas crenças, naquela caverna que muitos nem sequer conseguem perceber.


Chegando nos portões da universidade, antes mesmo de ouvir o som dos pássaros e dos cães que passeiam por todo o lado, ouço as boas novas: “O reino das ilusões, do senso comum, chegou ao fim!!!”, permitindo agora a entrada no terreno da CRÍTICA, da verdade, daquilo que é real, daquilo que realmente existe. Se antes acreditava no mundo ao meu redor, ou mesmo na crença de que tinha nas mãos o controle do meu próprio destino, percebo agora o meu engano infantil, percebo agora as estruturas que passeavam pelo meu comportamento e nem sequer desconfiava. Graças à famosa CRÍTICA posso ir além, posso tomar as rédeas do mundo e da minha própria vida, usando meu livre arbítrio como é de se esperar. Ao menos essa é a história que nos contam por aí, a história de que nós, sociólogos, somos CRÍTICOS, reflexivos, profundos, radicais. Será mesmo? Será mesmo que nossa esquerda sociológica é realmente radical, ou talvez não seja bem assim?


Com o passar do tempo, depois de muitas aulas, debates, eventos, conversas, além de camadas de frustração, percebi que essa famosa CRÍTICA se comportava de um jeito estranho... muito estranho, na verdade!!! Quando aparecia, tirada do bolso por alguém, não era direcionada a qualquer lugar, mas apenas ao que incomodava, o que insultava, direcionada apenas aos obstáculos, aos problemas. A CRÍTICA nada mais era do que uma arma, uma lança apontada a um inimigo, esse sempre externo: podia ser o capitalismo, a indústria cultural, a Rede Globo, o Estado, a Polícia, ou seja, essa lança não era aleatória, mas conveniente, direcionada apenas ao que ameaçava, insultava, e nada mais. Aprendemos que “CRITICAR” nada mais é do que uma forma de resposta, uma reação às rasteiras do mundo, aos obstáculos que são colocados no caminho.


Essa CRÍTICA unilateral, parcial, apenas voltada ao que me convém, ao que me incomoda, Nietzsche chamou de ressentimento. Esse corpo ressentido utiliza toda sua criatividade, energia e raciocínio na tentativa de aliviar a fonte da sua angústia. É claro que não existe problema algum em usar a cabeça dessa forma, em momentos como esse, em instantes que me incomodam, me insultam, afinal, a linguagem tem essa função. O real problema é quando essa CRÍTICA se resume a isso, quando não consegue enxergar maiores possibilidades, incapaz de ir além, sendo apenas um escudo ou uma lança, jamais algo mais profundo, mais radical.


Com a psicanálise, por outro lado, percebi um campo verdadeiramente CRÍTICO, um campo profundo, criativo, um espaço de uma esquerda legítima, radical. Um espaço onde o capitalismo é criticado, claro, mas também aquele sentimento bucólico, aquela crença em uma vida pacata e autossustentável, aquela crença numa natureza acolhedora e harmônica. Um espaço onde a indústria cultural é questionada, mas também a minha admiração por autores como Fellini, Rosselini e Lars Von Trier, autores de um circuito menos popular. Um espaço onde a Rede Globo é criticada, óbvio, mas também minhas reuniões no centro acadêmico, não tão puras quanto dizem por aí. Um espaço onde a CAPES é colocada contra a parede, por conta dos seus critérios sombrios, mas também o meu cotidiano com amigos e parentes, também povoado de critérios e dimensões obscuras. Em outras palavras, com a psicanálise a CRÍTICA não é mais parcial, conveniente, mas completa, profunda e, por isso, sempre arriscada.


Na psicanálise, ao contrário da psicologia, o problema não se mede em lágrimas, queixas e crises, ao seguir, portanto, um modelo médico (positivista), um modelo que entende a “doença” como disfunção, incômodo, caos, fazendo com que a meta seja o retorno da “harmonia” danificada, corrompida, perdida. Na psicanálise, por outro lado, o contato “saudável” com o outro, bem ajustado, com sorrisos e abraços, com seus “bom-dias”, “obrigado” e “com licença”, é o que interessa, no final das contas. Ou seja, o objetivo não é buscar uma interpretação conveniente, confortável, uma que possa acolher sua angústia, ao retornar para algum ponto sossegado lá atrás, mas justamente acolher o mundo como ele é: complexo, dinâmico e frustrante. O objetivo não é criar a ilusão de que o problema é pontual, externo, algo capaz de ser representado, contornado, mas entender o quanto é profundo, constitutivo da própria experiência. Existe sempre um abismo entre EU e o outro, assim como um abismo interno, lá nas profundezas dessa subjetividade, até então entendida como sólida, estável. O objetivo, portanto, é perceber que existem doenças coletivas, bem justificadas, doenças convenientes, incapazes de serem detectadas, ao menos por meios convencionais. Doenças escondidas por trás de sorrisos, por trás de abraços, por trás do prazer sentido, por trás daquela conquista realizada. A psicanálise não existe apenas em momentos de crise, como se fosse uma linguagem instrumental, como a sociologia, mas justamente quando as coisas estão bem, quando “EU” estou bem, quando “EU” estou acolhido nos braços da linguagem, sempre com uma explicação simples e bela. A psicanálise, por esse motivo, existe quando as engrenagens do mundo estão funcionando, ao observar assim as estratégias de fundo, toda uma rede que garante esse mesmo funcionamento. Qual o custo de manter a boa convivência? Qual o custo de um sorriso e de uma satisfação?


A psicanálise, como qualquer ramo genealógico, nietzschiano, vai sempre além do que aparece, mesmo quando o inconveniente surge pelo caminho, mesmo quando aquilo que mais amo é criticado, mesmo quando a minha liberdade, e não apenas a do outro, é colocada contra a parede. Enfim, mesmo quando aquilo de mais óbvio e inocente perde seu tecido branco, deixando manchas de inconsciência pelo caminho, descobrindo aquilo que não deveria ser descoberto, investigando aquilo que não deveria ser investigando, vendo aquilo que não deveria ser visto.


REFERÊNCIAS:


https://www.hypeness.com.br/2017/02/voce-controla-sua-vida-documentario-brasileiro-lanca-essa-e-outras-perguntas-sobre-nosso-inconsciente/


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