O presidente Jair Bolsonaro assinou no último dia 15 de janeiro um decreto que flexibiliza o acesso às armas no Brasil. O documento estabeleceu novas regras: cada cidadão requerente tem direito a obter até quatro armas em municípios que registrem mais de dez homicídios por cem mil habitantes; o prazo de validade da posse se estende de cinco para dez anos; comprovação de cofre para quem tem crianças e pessoas com deficiência em casa. Altera também a comprovação de “efetiva necessidade” para compra do produto. Agora ela é automática para agentes públicos que lidam com segurança e infratores. Residentes na zona rural também tem acesso facilitado ao armamento. O decreto passa a valer sem aval do Congresso.
Um assunto tão importante como esse jamais deveria ser implementado sem uma ampla discussão com a sociedade. Pesquisa Datafolha divulgada no dia 31/12/2018 revela que 61% dos entrevistados consideram que a posse deveria ser proibida por apresentar perigo à vida. Mas o presidente seguiu promessa de campanha e assinou o ofício sem o Parlamento estar empossado, o que poderia garantir audiência pública para debates. Portanto, a medida pode ser considerada autoritária. O novo governo dá mostras que não é muito simpático a discussões e consensos.
O decreto é visto como direito do cidadão à “legítima defesa”. Porém, necessitamos de um projeto organizado pelo poder público para combater a violência urbana, já que a posse é restrita a ambientes domésticos e comerciais. Parlamentares oriundos do militarismo policial e Forças Armadas, abrangendo diversas patentes, foram eleitos com o propósito de resolução imediatista do problema. Ao invés disso, já é estudada pelo presidente a efetivação do porte, quando o indivíduo passa a ter o direito de andar armado. O país precisa de planejamento coletivo e unificado, e que não atribua tanto ao contribuinte a responsabilidade pela proteção à sua vida. Para que uma eleição com tanta gente ligada à “bancada da bala”, se não for para pensar um sistema de segurança mais integrado e estruturado? O ministro Sérgio Moro – responsável maior da pasta da Segurança Pública – teve pouco poder de decisão nas resoluções do decreto, suas sugestões foram pouco atendidas, e o mesmo falou muito pouco sobre a questão. Embora tenha citado as dimensões da “bancada da bala”, não espero nada muito construtivo nos ideais desse grupo.
O referendo sobre o comércio de armas realizado em 2005 resultou em 63% dos eleitores decidindo que a venda não deveria ser proibida. Todavia, desde então é possível adquirir armamentos. Só que os defensores do atual decreto reclamam da burocracia e rigidez da Polícia Federal – responsável pela habilitação de posse – no processo. Bastaria melhorar os mecanismos de desburocratização. Não foi a atitude do governo. A própria discussão que levou a um referendo com campanhas contra e a favor anos atrás, seria jurisprudência para um debate mais amplo e necessário. Ao que parece – friso mais uma vez – o novo governante considera que sua eleição e promessas a tiracolo avalizam suas decisões, como se o eleitor adquirisse um pacote completo na urna eletrônica...
Uma pesquisa divulgada em junho de 2017 aponta aumento do número de assaltos a residências. Naquela ocasião, a cada hora uma casa era invadida no estado de São Paulo. Apesar da reportagem usar como exemplo uma família mantida refém durante uma dessas invasões, os dados não revelam se esses crimes ocorrem, em sua maioria em residências ocupadas por algum morador. Há registros de invasão em casas de veraneio ou de campo quando estão sem ninguém ou em locais quando não há pessoas presentes – o que supõe planejamento da conduta criminosa, e não uma ação atabalhoada. Portanto, há carências de dados mais precisos que justifiquem aquisição de armas para “legítima defesa”. Armas são instrumentos de ataque, nunca de defesa. A reação é uma contraofensiva, e nem sempre bem sucedida. Tivemos nos últimos dois anos mais de 200 policiais assassinados. A grande maioria em folga e uma parte deles estavam armados. Se nem profissionais do ramo conseguem conter o ímpeto de criminosos, que dirá o “cidadão de bem”.
Outra dimensão dessa temática é o parâmetro sempre utilizado na comparação com o uso de armas pela população norte-americana. Nos Estados Unidos a legislação proporciona um acesso maior às armas e existe até uma poderosa Associação Nacional do Rifle. Só que o “amor” do povo americano pelas armas foi forjado em um processo histórico e cultural de muitas nuances e particularidades, e não pode ser importado ou incrustado em nosso meio como algo a ser incorporado. Noto que os exemplos utilizados a respeito das maneiras como a população de lá lida com armas, serve de baliza para adotarmos modos semelhantes. Puro embuste! Ainda mais que o presidente do Brasil e seus apoiadores demonstram um apego às normas americanas e no caso específico de Bolsonaro, um personalismo Pró-Trump que chega a ser constrangedor. Essas similaridades representam uma variante por demais forçada e descaracterizada. Nunca fomos apaixonados por armas!
O decreto não indica que aumentará o número de pistolas em circulação ou que vai haver um consumo considerável de revólver, rifles e afins. No entanto, amenizar um processo de rigidez preocupa. Somos um país violento. Registros de feminicídio só crescem. Nas rodovias, acidentes e mortes por imprudência, tanto por excesso de velocidade, quanto ultrapassagens irresponsáveis. Só em 2017 foram 60 mil casos de estupro. Nos últimos anos, episódios envolvendo assassinatos a esmo, como um aluno que matou dois colegas e deixou uma paraplégica em Goiânia, e um homem que tirou a vida de cinco pessoas num tiroteio dentro de uma igreja em Campinas. Fora outras chacinas do gênero. Casos esporádicos, é verdade, mas que psicotestes nem sempre detectam. Falando nisso, alguém que leva uma multa por dirigir a 180 por hora pode ser considerado que tenha antecedente criminal?
Na zona rural, a violência não é menor. A Comissão Pastoral da Terra divulgou um estudo em 2017 mostrando que conflitos nessas áreas resultaram em 70 assassinatos. Confrontos no campo acontecem com frequência e facilitar armas nesse meio pode corroborar nova fase sombria de homicídios. Entre as vítimas, segundo estudos, indígenas, quilombolas, assentados, pescadores e integrantes de movimento de luta pela terra. Só gente vulnerável, a turma do “vitimismo”.
É possível notar o número de tópicos abordados e observar que o decreto presidencial não deveria ser proposto como ato egoísta de um chefe de Estado. Restam-nos perguntas mal respondidas: pra que tanta arma por pessoa? Quatro? Com números que indicam diminuição do tamanho das famílias? Até pets terão direito, dessa forma. Qual o problema em debater esse assunto? Falta de tempo? O governo estuda algum tipo de benefício para quem quiser comprar? Haverá subsídio? O que dá pra avaliar mesmo é que o embasamento em dados não parece – mais uma vez chamo atenção – ser o forte dessa equipe.
FONTE:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/15/bolsonaro-assina-decreto-que-facilita-posse-de-armas.ghtml
https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/em-2005-63-dos-brasileiros-votam-em-referendo-favor-do-comercio-de-armas-17786376
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2017/06/25/sp-tem-maior-n-de-ataques-a-residencias-em-3-anos.htm
http://caritas.org.br/cpt-divulga-novos-dados-sobre-violencia-no-campo-e-denuncia-ataques-hackers/38404