Será exibido no próximo dia 7 de fevereiro no Festival Internacional de Cinema de Berlim o longa-metragem “Marighella”, estreia do ator Wagner Moura na direção de uma película. Retrata as ações do poeta e ativista político baiano, morto durante o regime militar. No Brasil, o filme entrará em cartaz somente em abril. O protagonista será interpretado pelo cantor, compositor, e ator Seu Jorge. A obra cinematográfica é baseada no livro “Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”, escrito por Mário Magalhães.
Durante uma entrevista, assim que as gravações se iniciaram, Moura afirmou que o filme “tem lado”, com clara associação a posicionamentos de esquerda. “Tem que sair das cordas e partir pro ataque. Não falar do Brasil de 64, mas o de agora”, concluiu ele em dezembro de 2017. Àquela altura, o caldeirão polarizador que desembocaria em um acirramento raivoso nas eleições de 2018 já estava evidenciado. Durante as filmagens, um grupo ameaçou invadir o set de gravações em um post nas redes sociais. 15 jovens de uma frente antifascista garantiu apoio ao elenco para que a intimidação não se concretizasse. Isso demonstra o grau de intolerância política que permeou o país e teima ainda em não cessar.
Carlos Marighella foi deputado, guerrilheiro, e militante político. Nascido em Salvador, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro e foi preso aos 21 anos por escrever uma poesia (!) criticando o interventor da Bahia Juracy Magalhães. Mais uma vez foi aprisionado em 1939, combatendo o Estado Novo de Getúlio Vargas. Elegeu-se deputado em 1946, mas teve mandato cassado após o PCB ser colocado na ilegalidade pelo então presidente Eurico Gaspar Dutra. Expulso do partido, fundou a Aliança Libertadora Nacional em 1967 e passa a treinar guerrilheiros, quando escreveu o “Manual do Guerrilheiro Urbano “. Foi assassinado durante uma emboscada policial em 1969, aos 58 anos.
Em virtude da conturbada vida política, Marighella é denominado por muitos críticos de “terrorista de quinta categoria” e “assassino psicopata”. Após a decisão de Moura em colocar nas telas o referido combatente, não faltaram opiniões de desaprovação.
As reprimendas são de diversas ordens. Há comparações com “Lula, o filho do Brasil”, que teria captado uma fortuna em “dinheiro público “e fracassou em bilheteria, já prevendo que “Marighella” terá o mesmo fim. O longa dirigido por Moura obteve 10 milhões de reais via Lei Rouanet. A mesma crítica menciona que filmes baseados em “mentiras” não recebem apoio do público. Utiliza como exemplo de sucesso “Polícia Federal: a Lei é pra Todos”, sobre a Operação Lava Jato. Sucesso porque era totalmente baseado em verdades.
Outra análise, bem mais contundente, afirma que Marighella louvava o terrorismo como “uma arma que o revolucionário não pode abandonar” e criava poesias sobre a “arte de matar”. O “Manual do Guerrilheiro Urbano” contém passagens que dissertam sobre como executar policiais; agir com utilização de bombas e explosivos; realizar sequestros e defender atos terroristas. A crítica cita a Constituição Federal, que define terrorismo como crime inafiançável e, portanto, a Lei Rouanet não poderia financiar a obra. As críticas deixam claro o absurdo de usar “dinheiro público” para glorificar um “sociopata sanguinário”. Sem dizer que boa parte dessa turma se refere aos artistas que solicitam recursos por via da lei de “mamadores de teta do governo”.
Uma palavrinha sobre a Lei de Incentivo à Cultura, que entrou em vigor no ano de 1991, sancionada pelo então Ministro da Cultura Sérgio Paulo Rouanet, daí o “apelido”. A maior parte dos recursos advém do mecenato. Os patrocinadores (mecenas) investem em atividades culturais e descontam o valor investido no Imposto de Renda. Com isso, 1,7 bilhão deixa de ser arrecadado. No entanto, a renúncia fiscal por parte do Estado para os setores de comércio e serviços sai em torno de 77,3 bilhões por ano! Que beleza, hein?! Cadê a “chiadeira”? A Lei Rouanet cobra contrapartidas de quem capta recursos. Ingressos a preço reduzidos e sessões gratuitas em comunidades carentes compreendem essas compensações. A lei é fundamental para a sobrevivência de companhias e coletivos artísticos.
Vamos finalmente para as considerações do artigo. O filme em questão é baseado num livro. Ora, o livro oferece embasamento para a realização do longa. O que será retratado é invenção de Moura? Caso haja colocações que destoem da obra escrita publicada, não é permitido o tão famoso olhar do cineasta? Cadê a tal “liberdade de expressão” que esse povo tanto preza para sair falando o que bem entende? Outra coisa: o filme nem foi lançado! Não há conhecimento pleno de suas passagens. Como se constrói uma crítica com base em especulações? Não precisa ter prova, apenas convicções? Apesar de sabermos das posições ideológicas de Wagner Moura – expostos na entrevista concedida – ele não pode estar blefando? Esse momento de “tomar partido” pede, por vezes, um tanto de provocação.
É absurdo captar “dinheiro público” para a filmagem de um personagem controverso? É fato que Marighella é uma figura historicamente questionável, mas justamente por isso, não se pode atribuir uma versão exclusiva a ele, nem ninguém pode deter “a” verdade sobre sua trajetória. Se há discórdia quanto ao papel político e social inerente ao mesmo, o julgamento jamais pode ser definitivo, ainda mais em uma época onde “direita” e “esquerda” estão sempre trabalhando para puxar, cada uma, brasa pra sua sardinha ideológica.
Dentro de um contexto que abrange golpes de Estado, perseguições, clandestinidades, cassação de mandatos, planos mirabolantes para endurecimento de regimes, quem pode ser declarado inimigo oficial? Num país onde ocorreu 350 anos de escravidão; extermínio de cerca de 20 mil habitantes do Arraial do Belo Monte, no episódio da Guerra de Canudos (massacre esse realizado pela Guarda Federal!); torturas durante o regime militar, exílios, assassinatos de autoridades pelo crime organizado, enfim, qual deve ser o enquadramento financeiro para obras que retratem o teor de um país com tanto descalabro? Qual o recorte de “dinheiro público” pra quem merece?
Há diversas maneiras de retratar um ser repugnante, ou inescrupuloso que seja, nas telonas. Lampião – outra figura polêmica – já teve biografia veiculada. Em “O Último Rei da Escócia”, o ditador de Uganda Idi Amin, um dos mais cruéis da África, foi visto pelo olhar de seu médico. Os últimos dias de Hitler são expostos em “A Queda”, acompanhado de familiares e até destilando doçuras em algumas cenas. Como Marighella será descrito?
A questão é utilização de “dinheiro público”? Ok. Digamos que uma empresa qualquer venha a bancar integralmente um filme sobre um famoso torturador elogiado pelo presidente em plenário, sem nenhum programa de incentivo por trás. No longa, ele não é abordado em instante algum como membro de órgãos ligados à tortura, mas como um bondoso general que age com braveza apenas quando um “comunista “ realiza atentados com dezenas de mortes. Por ser um projeto custeado com recursos privados, pode apresentar a narrativa que quiser, pois, “o dinheiro é meu e conto da maneira que convém “? Se Moura realizasse o filme por conta própria, não haveria críticas?
Por fim, por que coloquei “dinheiro público” sempre entre aspas? Explico. Se uma montadora de veículos ergue-se em terreno público, recebe benefícios fiscais, contrata pessoal e depois demite para implantar sistema mecanizado, podemos concluir que sua lucratividade é fruto de “dinheiro público”? Se sim, as aspas são desnecessárias. Com isso, o perdão que o ex-presidente Michel Temer concedeu às empresas com a finalidade de driblarem a crise, da ordem de 47 bilhões, é dinheiro público não arrecadado! Além disso, dados da Receita Federal mostram que os perdoados apresentaram crescimento nos lucros. Cadê a grita? Como a Lei Rouanet é um investimento que também não chega ao erário e também não é aplicado diretamente por nenhum governante, deixei o termo entre aspas. Uma das críticas é justamente o apelo de projetos que podem ser mais lucrativos junto aos mecenas. O patrocinador indica qual atividade artística está direcionando a verba solicitada em projeto. Deixo na dúvida a publicidade ou não do dinheiro.
Será que haverá mais análises quando o filme finalmente for lançado? Não sei, e não gostaria de retornar a esse assunto. Por enquanto, já deu.
FONTE:
https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/marighella-de-wagner-moura-selecionado-para-festival-de-berlim-23360248
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/02/1954731-com-marighella-wagner-moura-aguarda-odio-da-direita-e-critica-da-esquerda.shtml
https://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/a-resposta-ao-terrorista-que-celebrou-na-tv-8216-a-beleza-que-ha-em-matar-com-naturalidade-8217/
https://oglobo.globo.com/opiniao/viva-marighella-viva-morte-22385074
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-e-a-lei-rouanet-como-ela-funciona/
https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2019/01/temer-perdoou-r-474-bilhoes-de-dividas-de-empresas-maior-anistia-em-10-anos-cjr6d5k75003e01nusdbyvybg.html
https://www.todamateria.com.br/carlos-marighella/ (imagem)