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O CORPO CÍCLICO

Joana Wiering Pinto Pupo Mercês




No dia em que sangrei pela primeira vez, como Mônica, eu chorei. Sentia meu corpo traindo a infância que me guardava na inocência das dores que vinham pela frente, por muitos anos. Era um choro de dor, mas também um choro de raiva, de angústia, de medo. De algum modo eu sabia, mesmo sem saber direito, que algo havia mudado naquele momento, que junto com o sangue que descia vivo, vermelho, escorria de mim um “eu” que eu não queria deixar ir. Era cedo demais, era só uma menina de 10 anos. Era cedo demais, eu pensava e chorava. Dava-se o meu primeiro encontro espinozano.


Depois de muitos ciclos, muitas menstruações, começo a entender o que todo esse processo significa, como há uma conexão intangível entre os ciclos que rodeiam a natureza. A lua, as marés, as estações do ano, a frutificação, meu corpo. Nós, mulheres, carregamos dentro uma potência. Uma potência tão profunda, tão poderosa, tão vital. Começo a entender como fomos e somos violentadas a cada dia, como os ciclos deixaram de ser soberanos faz tão pouco tempo e a terra se encontra em estado de alerta.


O feminino não é beleza e fragilidade, como insistem em tentar nos convencer. É força e víscera, fecundação da terra, nascimento, proteção. A ruptura com o feminino dissimula a verdade cíclica do mundo. Essa ruptura é como a ferida mais velha da humanidade, que continua jorrando sangue e caminha para uma necrose tardia.


Estamos desde então estagnados sob a tutela de um poder masculino, dominador, que impõe a linearidade, a padronização da vida, das formas, dos corpos. É essa ânsia fálica que em sua pretensão acredita dominar a terra, que tem anunciado caos, catástrofes naturais (ou tragédias humanas), a morte dos ecossistemas e da nossa própria espécie. O que será de nós mergulhados em plástico e dejetos químicos, vagando pelo grande pasto que estão virando nossas florestas?


A desunião dos dois princípios básicos da vida, as forças complementares que concretas ou não, comprovadas empiricamente por um método científico positivista ou não, reverbera em todas as minúcias do modo de viver da sociedade ocidental contemporânea. Entre feminino e masculino, yin e yang, purusha e prakriti, há uma infinidade de forças e relações que não se traduzem simplesmente em sexo, nem gênero. Se estamos à beira de um colapso climático, se temos um sistema de consumo compulsivo que leva a uma produção de lixo exorbitante, se a desigualdade mata uns de fome enquanto outros multiplicam milhões , é porque perdemos nossa conexão com o que há de fundamental, de necessário, de essencial na vida humana.


A monotonia que dá os tons dos nossos costumes, nossa forma de produção, nossa comunicação, a monocultura, o monopólio, a monogamia, o monoteísmo são todas invenções de um poder unilateral, um poder masculino que não concebe a abundância da terra, que não compreende seus ciclos e não respeita seu tempo. A noção de progresso indefinido e do tempo linear foram aspectos históricos da modernidade que foram concebidos, muito provavelmente, em salas repletas de homens, pensando.


As colheitas não condizem mais com as estações. Por que comer só um tipo de arroz se existem centenas de espécies? Por que adorar apenas corpos padronizados se existem diversos deles, em vários formatos? Por que conceber o amor, a família e o prazer para o mesmo homem, para quem a monogamia é sinônima de propriedade e não de fidelidade? Por que pensar as cadeias produtivas sem reuso, reciclagem? Deveríamos aprender com os fungos decompositores.


Não seria razoável, entretanto, apontar para todos os homens como causa primordial de todos os problemas do mundo. Não é sobre isso. Somos todos, homens e mulheres, o conjunto desses dois princípios. A união psíquica e natural entre esses supostos opostos está em cada um de nós, em diferentes medidas. Resgatar a conexão e parar de inferiorizar o feminino seriam os primeiros passos para ancorar a humanidade na terra. Para que o delírio machista de um mundo monótono não continue a devastar a diversidade e a abundância da natureza, para que todos os humanos vivam e possam conviver de forma cíclica, em consonância com o tempo não linear, mais próximos da complexidade indescritível da realidade.


A racionalidade, a criação, o princípio masculino da vida é fundamental, é necessário e tem seu lugar ao lado, não acima, da força essencial feminina. É o equilíbrio, a constante alternância, a simultaneidade da existência dessas forças que compõe a natureza como um todo. Essas são apenas duas, dentre as inumeráveis possíveis forças existentes na rede cósmica que fazemos parte.


Aquelas lágrimas da menarca, hoje fazem eco. Aquele choro era também de potência. Era um choro de criança que sentia a força do que é ser uma mulher. É honrando aquela menina de 10 anos atrás que hoje tento encontrar perguntas, muito mais do que respostas, para o mundo que me cerca, que me afeta.


Eu, meu corpo, a terra, somos cíclicas. E como um ser cíclico, potente em vida, depois de anos tentando tornar esse corpo mais conveniente ao sintético mundo moderno, decidi deixar-me ser. E a partir de então, tornar-me eu. Uma busca continuamente construída a partir de relações das mais diversas, campos de forças cíclicas dos mais complexos, quase imperceptíveis. O “eu” efeito, o “eu” movimento ascende agora em consciência, em afeto.


Referências da Imagem:


https://www.celesteprize.com/artwork/ido:265144/

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