Humanos para viverem juntos precisam construir redes de cooperação. Para isto é necessário criar ordens imaginárias, mitos inventados e reproduzidos pela cultura. Espontaneamente, sapiens não são afeiçoados a viverem juntos em grandes dimensões. O instinto de cooperação talvez funcione a grupos restritos, mas não em reinos, cidades e países com enorme densidade demográfica. Por isso, a função da crença em mitos partilhados é a única salvaguarda para colaboração social com pessoas desconhecidas. Mito se refere a forma como a sociedade se organiza, baseada em diferentes hierarquias sociais com origem na crença em seres espirituais, leis da natureza, deuses, pseudociência. Ordens imaginadas são preexistentes e tendem a moldar nossa forma de viver, como um habitus, pré-reflexivo; se questionadas a fundo desmoronam como castelos de areia. Yuval Harari nos conta isso no seu livro mais conhecido, Sapiens: uma breve história da humanidade.
Agora olhemos para nossa realidade moderna, ocidental e brasileira, especificamente a nossa Carta Magna, em especial o item Direitos e Garantias Fundamentais, artigo 5 : “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. A igualdade é o conceito central aqui que norteia uma Constituição democrática. Sua raiz/crença moderna é religiosa. Até aí não há problema. Mas para que o espírito se torne carne, é fundamental que a estrutura política e jurídica faça com que todos acreditem nessa ordem, crença, ideologia, poder simbólico, consciência coletiva, representação imaginada chamada Estado Democrático de Direito.
O mito da igualdade é um pilar crucial ao humanismo moderno, aos Direitos Humanos e a Democracia liberal. A concepção de ser humano universal não era a válido em sociedades consideradas pré-modernas (me perdoem manter a visão arbitrária do Iluminismo). O valor da igualdade aponta que todos são dignos de viver, sendo resguardados por direitos civis, políticos e sociais, independente de classe, cor, gênero, sexo, etnia, religião.
Para que esses fundamentos passem às próximas gerações, mantendo uma ordem estável, é preciso que toda pessoa, desde a tenra idade, precise internalizar esses valores - inscritas no próprio direito positivo - agindo como se fosse um fundamento último – uma segunda natureza.
Se os aparelhos estatais, como a polícia e a escola, falham em incutir e produzir a crença da igualdade, como poderemos manter a coesão social? Déficit de formação cidadã democrática gera a descrença em relação ao respeito a vida alheia. Com esses problemas, no limite, eu e você começaremos a selecionar quem é humano de quem não é. O extremo disso tudo justifica as maiores atrocidades à vida. No Brasil, por exemplo, em 2016, 43,2 mil pessoas foram mortas por armas de fogo, número que o coloca em primeiro lugar do ranking mundial de mortalidade por armas. Esses dados foram publicados pelo Global Burden Disease, órgão da OMS, em 2018.
Quando são relatados casos em que um policial despreza a integridade física de uma pessoa, como o caso do torcedor uruguaio que foi espancado por supostos flamenguistas no Rio de Janeiro, ou o cidadão comum que ignora a autoridade do policial e agride o torcedor bem à sua frente, realmente estamos atravessando um período de retrocesso civilizacional, um perigoso desrespeito a ordem.[1] A banalização de atos como estes corrói a crença no Estado democrático. O mesmo vale a pífia e pobre definição de “bandido bom é bandido morto”, concepção de uma ordem imaginada completamente anti-igualitária.
Nunca uma ordem imaginada durou para sempre! A História mostrou que já tivemos várias formas de organização política, jurídica, moral, sexual, religiosa, econômica implodidas. Mas a própria História também ensinou que quanto mais uma sociedade trabalha visando educar seus cidadãos, assimilando suas crenças, valores e princípios, mais tempo ela sobreviverá. Se o Estado está contaminado pela corrupção, imoralidade, atitudes ilícitas e escusas, desrespeito à Constituição, comportamentos voltados exclusivamente a interesses privados, o resultado é reino da selvageria.
Se quisermos realmente estender a Democracia, os Direitos Humanos e pensar no progresso moral inclusivo e igualitário, os representantes do Estado e seus funcionários precisam ser exemplos. Uma figura pública jamais pode dizer que existem “direitos humanos para humanos direitos”. [2]
As instituições devem funcionar visando garantir a legitimidade estabelecida! Discursos de ódio e preconceito não devem ser tolerados em hipótese nenhuma. É preciso punir com rigor. Se nada disso funcionar, se uma camada considerável da sociedade desacreditar nesses valores e em seus fundamentos, o que resta é o vale tudo. E o que vem depois? Outra ordem imaginada que talvez possa ser muito mais excludente. Difícil saber. Não há uma teleologia, uma direção a priori. Mas, ao que tudo indica, a Democracia ainda é a forma mais inclusiva existente, ao menos na sua idealidade, como norteadora. Mesmo que ela esteja fundada no mito da igualdade e da liberdade natural (quase sempre conflitantes factualmente) devemos nos esforçar para manter viva essa crença.
Até a próxima!
[1] (https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/04/03/video-mostra-torcedor-sendo-espancado-ao-lado-de-pm-corporacao-diz-que-ele-seguiu-orientacao.ghtml)
[2] (https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/11/01/interna_politica,1002158/general-heleno-defende-direitos-humanos-para-humanos-direitos.shtml).
Link da imagem: https://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/4233470.html