É comum entender a ciência ou a filosofia de uma forma pragmática, ou seja, algo que serve para corrigir um problema, resolver uma dificuldade e, claro, tranquilizar a cabeça no final de um dia estressante, ao oferecer um pacote bem estruturado e conveniente de palavras. A ciência, por esse motivo, teria um papel funcional, sempre mantendo as coisas em ordem, ao mesmo tempo que garante a estabilidade das relações. Se existe angústia, a psicologia aparece e remenda as lacunas na experiência de alguém. Se existe desigualdade, a sociologia surge e conserta o problema ou, ao menos, propõe alguma alternativa. Se existe uma dor no joelho, o médico agora assume o comando e resgata de volta o bem-estar do paciente. Em outras palavras, ciência aqui é pensada como uma ferramenta, algo que corrige, costura, conserta, tranquiliza, etc. Mas nem sempre a história segue por esse rumo. Figuras como Darwin, Nietzsche e Freud criaram um tipo de linguagem bem incomum, chegando até à fronteira do inconveniente, daquilo que não poder ser dito ou visto. Ao invés de um discurso funcional, integrado ao ego e à cultura, o que temos é o oposto, um olhar ácido, profundo e cheio de camadas de obscuras.
Muitos acreditam que Darwin criou a teoria da evolução, o que não é verdade. A teoria da evolução é muito mais antiga do que as pessoas imaginam, além disso, ela sempre dialogou bastante com o olhar criacionista (religioso) de mundo. O inédito na teoria de Darwin, e aquilo que realmente gerou desconforto, foi sua teoria da evolução por seleção natural, sendo nada mais do que um mecanismo cego, descentrado e indiferente. Em Darwin a natureza não segue um rumo determinado, não marcha para algum horizonte qualquer, muito menos um caminho conveniente. Além disso, o humano perde o seu vaidoso posto de protagonista e passa a ser um simples acidente biológico, nada mais do que um erro genético [1] que deu certo, como tantas outras espécies ao longo de bilhões de anos. O humano, dentro dessa linha de pensamento, é uma criatura desamparada, não tendo nada de incrível, a não ser uma linguagem e um corpo presos em uma natureza temperada com indiferença.
A visão criacionista, religiosa, ao contrário, entende que o mundo tem um sentido sólido, um proposito, sendo o humano uma peça chave nesse jogo da vida. Tudo tem a sua meta, da mesma forma que cada gesto não é arbitrário, mas uma extensão de um plano bem estruturado, da mesma forma que na tragédia grega as moiras determinam o destino dos personagens, como quando Édipo tenta escapar da prófecia, mas não tem jeito... o destino sempre retorna. O olhar criacionista entende que nada é por acaso, tudo tem um sentido, mesmo aquele evento mais espontâneo. Tudo pertence a uma grande narrativa, um tipo de matriz que organiza cada detalhe ao redor, não importa se pequeno ou grande. Se Darwin fosse um Pollock, uma pintura difusa, intensa e angustiante, a visão criacionista poderia ser uma pintura clássica, com seu ponto de fuga organizando cada centimetro da tela. Enquanto um é descentrado, quase arbitrário, o outro é formal, harmônico. Seria a diferença, na literatura, entre Kafka, e sua escrita espontânea, quase aleatória, e Flaubert, com seu realismo bem costurado.
Apesar de tanta acidez, existe um lado otimista na teoria de Darwin, por incrível que pareça. A nossa querida e persistente vaidade é implodida, aquela crença de que o universo inteiro gira em torno do nosso desejo. Ao não ser mais uma espécie privilegiada, criada a imagem e semelhança de um criador onipotente, o humano começa a perceber o quanto sua vida depende da natureza, depende de tudo a sua volta, estendendo agora sua ética para outros campos. Ao ter menos vaidade, começa a perceber que o planeta Terra não é seu, não é um objeto, uma mercadoria, uma posse. O olhar trágico de Darwin carrega um ensinamento importante, a certeza de um mundo aberto de encontros, criações, fazendo do humano um fio de sentido emaranhado a tantos outros. Talvez o darwinismo não seja tão trágico quanto dizem por aí. Talvez o mundo continue com significado, continue tendo importância, mas a partir de um outro ponto de vista.
[1] Ainda não tinha sido invetado a genética no momento da publicação da Origem das Espécies (1859)
REFERÊNCIAS DA IMAGEM:
https://animais.culturamix.com/curiosidades/evolucao-x-criacao-semelhancas-entre-o-homem-e-o-macaco