1º de Maio, Gênero e “Reforma” da Previdência

Por Armando Januário dos Santos [1]
Dedico este artigo a meu pai, In memoriam.
Ele nunca teve acesso à educação formal, trabalhando a vida inteira
em atividades penosas e se aposentando com um ganho mensal
inferior às suas despesas com alimentação e medicações.
Estaca utilizada para castigar escravos na Roma Antiga e precursor do pelourinho, o tripalium era, como o próprio nome indica, formado por três paus, aos quais o indivíduo era preso e torturado. O termo deu origem a palavra trabalho, fazendo alusão ao aspecto penoso envolvendo o contexto das diversas ocupações profissionais.
No atual contexto político nacional, o sentido de trabalho se tornou uma verdadeira angústia. Em 13 de julho de 2017, a Lei 13.467, aprovada sob a égide de um governo ilegítimo e golpista, trouxe mudanças impactantes sobre a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Para se ter ideia, a Lei em questão é tão controversa, que seu próprio texto prevê a publicação de uma Medida Provisória (MP), segundo ela, necessária para dirimir eventuais imbróglios em seu cumprimento. Ou seja: é aspecto essencial da Lei 13.467 antecipar que seu próprio advento poderia trazer dificuldades para se fazer cumprir, e, para isso, um remendo constitucional, a MP 808/17, deveria ser utilizado, dentro do prazo de 120 dias, período em que tal legislação entraria em vigência.
Após a eleição de um governo de extrema direita, a classe trabalhadora luta para não ser golpeada mais uma vez: a Reforma da Previdência, não aprovada por Temer, recebeu uma nova versão, na prática ainda mais castradora e com chances reais de ser aprovada. Contribuir 40 anos, idade igual para mulheres e homens – 65 anos – são alguns dos pontos negativos, que acenam para o retrocesso, podendo levar, nas próximas décadas, o Brasil ao mesmo estado de coisas do Chile, onde idosos se suicidam, devido às regras da Previdência reduzirem seus benefícios a valores ínfimos, com os quais não se consegue sobreviver.
Neste conturbado contexto, refletimos acerca da perspectiva futura das minorias sociais – especialmente mulheres cisgêneras, pessoas trans e travestis – quanto ao emprego formal.
A história do Ocidente foi escrita pelas mãos de homens. Desde o clã pré-histórico, passando pela voz do pater potestas da Antiguidade e chegando a este tempo ainda marcado pelo capitalismo patriarcal – em que, das 500 maiores empresas do mundo, 492 são lideradas por homens – a dominação masculina predomina e oprime. As mulheres sempre foram consideradas frágeis e inferiores. Para legitimar tal visão eivada de misoginia, as diferenças visíveis entre os sexos são milenarmente instrumentalizadas, para, de um lado, estabelecer relações de poder que legitimam o machismo, e, de outro, culturalmente impor a ícones femininos, rótulos, como: o claro e o escuro, a doçura e a desvirtuação, a luminosidade e as trevas. Eva e Maria, Bate-Seba e Sara são algumas das imagens utilizadas na transmissão do pensamento binário sobre como devem ou não agir as mulheres para ser consideradas virtuosas.
Nem mesmo a Revolução Francesa viabilizou às mulheres direitos totais sobre seus próprios corpos. Em direção oposta, aproximou a mulher da obrigatoriedade do papel materno. Nesse ínterim, ainda que com todos os avanços conquistados pelo movimento feminista, em especial a partir da sua segunda onda, em meados dos anos 1960, aspectos fundamentais para a atuação profissional das mulheres no mercado formal de trabalho – formação educacional, progressão salarial e plano de carreira – são menores se comparados aos dos homens, ou caso sejam maiores, não resultam necessariamente em sucesso empregatício.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) realizada progressivamente no terceiro trimestre de 2014, comparando-o com o cenário de estagnação econômica do terceiro trimestre de 2016, indica, entre outras informações, que, desde a sua entrada no mundo do trabalho, as mulheres participam em número menor que os homens. Elas compõem o mercado profissional em apenas 50,4% e, em sua maioria, nas profissões que remuneram menos, como, por exemplo, empregadas domésticas. Mesmo com os dados referentes ao terceiro trimestre de 2016 indicando que as mulheres aumentaram sua participação no mundo do trabalho formal, é preciso contextualizar o grave momento histórico em que isso ocorre: uma crise política que redundou no recrudescimento da crise econômica, a qual, por sua vez, certamente levou as mulheres a buscar emprego para equilibrar os ganhos familiares.
Quanto às pessoas trans e travestis, os dados indicam uma realidade de exclusão social ainda mais contundente. O Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017, publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais no Brasil (ANTRA), aponta para 90% da população trans e travesti atuando na profissão do sexo, dada a histórica dificuldade para se inserir em empregos formais, causada pela transfobia no ambiente familiar, escolar e social. O Brasil é o país em que mais ocorrem assassinatos motivados por ódio contra pessoas trans e travestis: no ano passado, a ANTRA relatou 179 homicídios, 169 deles contra travestis e mulheres transexuais e 10 contra homens trans. Os números são os maiores em todo o mundo, contudo, podem ser superiores, tendo em vista o grande contingente de subnotificações. Em termos de exclusão familiar, 13 anos é a média para uma pessoa trans ou travesti ser expulsa de casa pela família. Os indicadores educacionais estão muito longe de qualquer inclusão para igualdade social: 0,02% de pessoas trans e travestis são universitárias, 72% não concluíram o Ensino Médio e 56% não completaram o Ensino Fundamental. Torna-se inviável, portanto, atestar dados de empregos de carteira assinada para uma população com índices de alta vulnerabilidade, que expressam um verdadeiro estado de genocídio e desigualdade social. Mais que isso: os percentuais divulgados pela ANTRA apontam que viver uma identidade de gênero contrária ao que é imposto por uma sociedade deseducada – ou pseudoeducada à base de discursos de ódio – é, diariamente, assinar uma sentença de morte violenta.
Reconhecemos que as decisões judiciais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF) para pessoas trans e travestis, conforme determinação em 1º de março de 2018, são históricas e representam um avanço sem precedentes na forma pela qual o Estado se relaciona com estes sujeitos de direito. O TSE – ao reconhecer que travestis e mulheres transexuais podem concorrer às eleições pelas cotas referentes ao sexo feminino, e que homens trans concorrerão através das vagas para o sexo masculino – e o STF – ao viabilizar à mudança de nome e sexo de pessoas trans e travestis em todos os seus documentos, sem necessidade de cirurgia de redesignação sexual, laudo psicológico e sentença judicial – de fato, proporcionam esperança de uma sociedade igualitária. Entretanto, receamos que tais medidas, mesmo se tornando uma realidade palpável, possam se constituir apenas como uma inclusão social forçada, a qual poderá não atingir seu principal objetivo: reduzir as iniquidades. Na verdade, as decisões das maiores casas jurídicas da República, caso não acompanhadas de mudanças estruturais em áreas historicamente negligenciadas – e mesmo atacadas – por praticamente todas as administrações públicas, a exemplo da educação, incorrem no risco de se tornarem apenas um tímido aceno aos anseios de quem deseja uma existência digna para todas as pessoas. E seguramente, não será um governo desprovido de apoio popular que realizará transformações com tamanhas dimensões. Pelo contrário, é cotidiana a perseguição instituída por este mesmo governo, contra minorias sociais
Esperamos que O Dia do Trabalhador em 2019 seja momento de reivindicações pelo retorno à democracia, de Lula Livre, mas, também de conscientização e luta democrática nas ruas contra os ataques aos corpos das trabalhadoras: uma Reforma da Previdência jamais poderia igualar as idades de aposentadoria para mulheres e homens.
O corpo, especialmente o feminino, tem sido, através dos séculos, palco de transformações psicológicas, sociais, culturais e políticas. Em sua persistência para torná-lo dócil, o Ocidente tem sido bastante competente ao empreender táticas, algumas sutis, outras ostensivas, intentando transformá-lo em máquina ideal à neoescravidão. A modificação – ou seria deformação? – nos direitos de trabalhadores do Brasil comprova a utilização do trabalho como ente que restringe as liberdades sexuais e promove as desigualdades entre gêneros, ao mesmo tempo em que dificulta o acesso das minorias sociais ao pleno exercício dos direitos sobre seus próprios corpos. Para isso, as elites, com apoio de setores da classe média – que ao longo da história brasileira, têm se caracterizado como autênticos exércitos de combate pelos interesses da cleptocracia – lançam mão do poder de influência das instituições – família, escola, religião, ciência, organizações – ambicionando concretizar aquele que parece ser seu principal projeto: a ignorância como mecanismo de silenciamento das massas.
[1]Armando Januário. Sexólogo. Psicanalista em formação. Concluinte da graduação em Psicologia. Professor de Língua Inglesa. E-mail: armandopsicologia@yahoo.com.br