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José Saramago e o Dia do Trabalho

Foto do escritor: Equipe SoteroprosaEquipe Soteroprosa

POR NEUSA MARIA DOS SANTOS PIRES

Pensar em Dia do Trabalhador e Literatura pode parecer surreal, mas vamos dar pausa a uma leitura? Resolvi, neste dia “comemorativo”, contar um pouco da estória de um funcionário público, alguém comum, que teve o espírito investigativo como um diferencial na sua vida, e transformou sua rotina na instituição que trabalhava.


A décima obra de José Saramago, Todos os nomes, publicada pela Companhia das Letras, narra a estória de um escriturário, funcionário da Conservatória Geral do Registro Civil, o Sr. José, que tem como hábito colecionar recortes de jornal que tratem sobre a vida de pessoas famosas.


Homenagear o Sr. José, como representante de muitos trabalhadores, sugere um pouco de leveza, dando continuidade à questão da leitura de textos literários. Esse personagem tem um imenso senso de persistência, motivação e determinação nos objetivos das coisas que mais gosta de fazer. Vencer desafios, acreditar que, mesmo que seja mais um na multidão, podemos representar singularidade quando acreditamos em nós diante de situações cotidianas. Te lembrou algo?


O autor nos convida, em sua narrativa, conhecer a rotina de um homem que teve sempre como atividade principal da sua vida o TRABALHO. Apesar de deixar transparecer a desmotivação do Sr. José para as questões laborais, Saramago deixa claro que ele dedicou boa parte da sua vida às atividades na Conservatória Geral.


Será que fazer as mesmas tarefas e atividades durante toda uma vida pode ter sido, para o Sr. José, um elemento motivador que o levou à buscar outras aventuras? O que poderia trazer novas possibilidades para um homem tão previsível na sua função?


Neste Dia do Trabalho, vamos dar uma pausa para adentrar no universo deste romance, que conta a aventura de um escriturário diante da rotina de trabalho, aflorando o espírito investigador, curioso e determinado de busca.


Como assim? Um escriturário? Pesquisador? Alguém que não se limita às normas em busca do seu objeto? Uma pessoa que vive inquieta com uma rotina marcada pelas mesmas ações, sem nenhuma emoção da descoberta, da originalidade, do novo.... O Sr. José chegou a mentir e se utilizou de outros artefatos para encontrar o que tanto procurava.


Mas, afinal, qual a relação entre o Sr. José, o trabalho e a metodologia científica? Inicialmente parecem coisas completamente sem relação. Entretanto, o romance faz da pesquisa científica o cerne de toda a estória. Sr. José colecionava recortes de pessoas famosas e resolveu aproveitar do seu local de trabalho para ampliar a sua coleção. De que modo? Ora, esperto e determinado, ele resolveu utilizar as informações contidas no arquivo da Conservatória para seus objetivos.


Mas, não estaria Sr. José quebrando a ética profissional? Caso para refletir. Neste momento, as normas de trabalho estariam à prova. Ele começou a buscar no turno da noite nomes de gente famosa, entre tantos nomes surge uma ficha – a desconhecida - que iria representar o objeto de estudo do então pesquisador que habitava em Sr. José.


Em se tratando de pesquisa científica, quanto mais complexo o objeto de estudo, mais rigor temos que ter na metodologia, nos métodos utilizados e maior a curiosidade quanto aos resultados, independente dos caminhos metodológicos que iremos percorrer para tal. A essa altura, podemos pensar: e o Trabalho? Viver uma aventura dessas pode ser o fim da estabilidade tão almejada por todos. Estabilidade que na realidade deve ser alvo de discussões constantes. Mas vamos retomar a estória do Sr. José?


Assim como um bom pesquisador, a curiosidade do Sr. José era a principal razão de viver; descobrir a identidade daquela mulher desconhecida naquela ficha era um desafio, o que exigiu do funcionário público deixar os princípios de lado. José não era um “José” qualquer, ele era diferente, singular, inquieto, tinha espírito aventureiro.


A rotina de Sr. José foi tratada pelo autor de modo especial e peculiar, com emoção, que nos leva a seguir as pistas das investidas do personagem no âmbito da ficção, dos detalhes, da criatividade, e das revelações das aventuras vividas pelo escrivão.


De maneira inteligente e original, nesta estória, o único personagem que tem nome próprio é o Sr. José, os outros personagens são referenciados com nomes comuns: a mulher, o chefe, o cachorro, entre outros elementos que, ao longo da estória, vão se constituindo também personagens.


Embora no território brasileiro, o nome José seja comum, metaforicamente no romance, ele consegue apresentar universalmente todos os outros. Saramago sempre soube apresentar as coisas mais simples para representar algo mais complexo, e de múltiplas intenções.


As questões do cotidiano vistas em romances como, Ensaio sobre a cegueira, entre outros romances de Saramago, servem de pano de fundo para discutir a vida em sociedade, as nossas crenças, o que somos e representamos, e as situações vividas por pessoas de diversas classes sociais, diante dos confrontos existenciais do ser humano.


Nessa estória, o autor infere questões e dilemas relacionadas à vida e a morte, a fragilidade do sujeito social, imbricadas em questões filosóficas, sociais e, sobretudo, do modo que somos vistos no meio social. E nesse imaginário descrito, também é permitido rir e chorar. O cotidiano de um homem que teve como desejo pensar em si, em algo que te deixava realizado e apaixonado, era desafiador. Sem se preocupar com a mentira que utilizava para alcançar suas metas, sem reservas, nem escrúpulos.


O principal objetivo do Sr. José: saber o que tinha acontecido com aquela mulher desconhecida. E, de maneira inconsequente, o Sr. José cada dia mais se intrigava com o seu objeto de estudo. Descobriu que a mulher tinha se suicidado, levando a pensar sobre a vida, a morte, o quanto somos apenas o que podemos representar aos outros. O investigador, nas suas investidas, teve ainda que encontrar documentos que pudesse evidenciar os fatos. Como na Ciência, a documentação deve ser verídica e os dados comprovados.


O pesquisador deve ter consciência da importância de utilizar informações verdadeiras. No romance, o autor apresenta uma infinidade de interfaces no comportamento de Sr. José diante das regras e formalidades sociais, o que o fez um personagem extremamente humano e questionável por muitos leitores.


Todos os Nomes legitima a fragilidade do que somos, a importância dada a imagem de uma pessoa na sociedade, é um mergulho na essência de um homem considerado tão pequeno diante dos gigantes que detém o poder. Um homem que em busca de alguém consegue voltar-se para si mesmo. Morin (2003, p. 39) menciona que o grande milagre de um romance é relevar a “universidade da condição humana, ao mergulhar na singularidade de destinos individuais localizados no tempo e no espaço”.


Aos pesquisadores iniciantes, essa obra pode ser uma ótima opção, principalmente aqueles que se encontram na aflição de delimitar o seu objeto de estudo. Para os que ainda persistam no uso de métodos tradicionais, a descoberta de outros vieses aos seus objetivos e desenvolvimentos metodológicos pode ser bastante enriquecedor.


A coragem do Sr. José retrata a natureza desafiadora da pesquisa, e da necessidade de encarar os desafios, os medos, e, principalmente, ter a certeza do que buscamos. Todos os Nomes consiste numa reflexão, uma contribuição nos aspectos abordados num processo de desenvolvimento de uma investigação científica. Luna (2002) critica a prática da pesquisa em substituição à metodologia. Contudo, o Sr. José teve propriedade ao desencadear uma prática investigativa compreendida como análoga a prática científica, nas pesquisas realizadas no espaço Casa-Arquivo em busca da história da mulher desconhecida.


Preciso ressaltar a vocês, que a paixão do Sr. José pela desconhecida induziu e provocou no funcionário público muitas mudanças nas suas atividades laborais, e interferências nas suas práticas arquivísticas na Conservatória. Luna (2002, p. 23) menciona que “nada impede que um profissional pesquise sobre sua realidade e, ao mesmo tempo, preste serviços aos envolvidos nela. Do seu ponto de vista, este seria o profissional ideal”. E você, pensa da mesma forma?


O romance ainda perpassa pela responsabilidade social, ética e política que todo pesquisador deve imbuir para auxiliar na intervenção de uma realidade, com ações concretas de melhorias, numa realidade específica.


A leitura de romances como Todos os Nomes, que aborda a descoberta e a reformulação de valores, tanto às pessoas do senso comum, quanto aos pesquisadores, torna-se muito valiosa à Literatura. Que os leitores sintam-se encorajados pela trajetória do Sr. José, mediante os obstáculos e desafios enfrentados no desencadear de suas pesquisas.


Link da imagem: https://www.facebook.com/173742105989688/photos/d41d8cd9/1712207438809806/


REFERÊNCIAS


LUNA, Sergio Vasconcelos de. Planejamento de pesquisa: uma introdução, elementos para uma análise metodológica. São Paulo: EDUC, 2002.


MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.


SARAMAGO, José. Todos os Nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.


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