Muitas pessoas lá fora entendem a criatividade e a iniciativa enquanto um assunto de esquerda, como se o restante apenas reproduzisse de uma forma mecânica valores, teorias, critérios, etc. Temos a impressão de que o conservador é mais devagar, apenas reproduzindo valores que já existem e que garantem sua estabilidade. Acreditamos que ele apenas reproduz toda uma linguagem já dada e disponível, como se fosse uma criatura robótica, daí o termo “alienado” para descrever esse tipo de sujeito. O curioso nessa história toda é o quanto a reprodução pede criatividade, o que pode soar estranho e até mesmo contraditório. Para que as coisas continuem funcionando como sempre funcionaram, e tudo continue do mesmo jeito, o gasto de energia deve ser imenso, muito mais do que poderíamos imaginar. Nesse sentido, o conservadorismo é mais ativo e até mais militante do que a própria esquerda, ao menos em um nível fenomenológico, aquele que envolve a experiência básica e espontânea do cotidiano.
Mesmo a ética mais conservadora não é uma estrutura fixa que cobre cada circunstância, quase como um cobertor imenso e anatômico, o que seria impossível e absurdo só de imaginar. Todo artifício de linguagem é frágil, cheio de lacunas, sempre forçando o sujeito a remendar as suas falhas, principalmente justificando as contradições que brotam pelo caminho, assim como faz Alexei, personagem do livro “Irmãos Karamazov” de Dostoievski. Apesar de religioso, os seus valores começam aos poucos a se desmanchar, deixando transparecer buracos, falhas e contradições que ele não percebia antes. Dostoievski também deixa claro a criatividade presente no personagem, seu desespero e esforço para manter suas crenças em ordem. Em outras palavras, é possível ver o custo psicológico para manter uma realidade que jamais foi obvia, mas que precisa ser atualizada a cada instante.
Imagine um indivíduo fundamentalista religioso, alguém que entende a fé como um resultado de textos sagrados, e nada além, da mesma forma que enxerga a vida como um projeto já estabelecido, sem muita surpresa ou dúvida. Parece que esse sujeito apenas reproduz dogmas já prontos, não é mesmo? Parece que apenas segue o ritmo que outros já estabeleceram. O problema, e a parte curiosa dessa história, é que esses mesmos dogmas religiosos jamais estiveram prontos, jamais foram sólidos, principalmente quando se deparam com obstáculos pelo caminho, como temas e circunstâncias que incomodam, angustiam e desestabilizam. Ou seja, para manter o seu conservadorismo o indivíduo precisa justificar as lacunas dos seus valores, costurando suas falhas, ampliando suas dimensões. Precisa de um nível de atenção e agência fora do normal, muito além da média. O irônico é que o sujeito acaba mudando para que as coisas permaneçam como sempre, assim como mobiliza muita criatividade, mas apenas direcionada para estabilizar as coisas. Seria como um revolucionário, embora seguindo por outro caminho.
O habitus em Bourdieu, a partir de uma leitura rápida, superficial, é visto como um movimento mecânico de pura reprodução. O interessante é perceber que esse mesmo habitus, resultado de categorias internalizadas, é cheio de lacunas e furos, não um tecido pronto, bem costurado. Nenhuma categoria da conta da complexidade do mundo, nenhum critério consegue cobrir cada centímetro da realidade, muito pelo contrário. Categorias e critérios são dimensões furadas, frágeis, ainda que internalizadas, o que força o indivíduo a costurar as falhas e os buracos pelo caminho. Ou seja, em Bourdieu as pessoas reproduzem esquemas de pensamento e prática justamente porque são criativas, o que parece contraditório, mas faz todo o sentido quando o assunto é a experiência do dia-a-dia. O problema é que temos aqui uma criatividade circular, que apenas é mobilizada na esperança das coisas continuarem como sempre foram, ao garantir estabilidade, conforto e segurança. Em termos nietzschianos, seria como um artista que não reconhece seu potencial artístico, não entende o quanto é criativo. É o próprio sujeito, e não seus valores, que organiza a experiência, é sua capacidade de remendar lacunas, costurar falhas, justificar contradições, etc. A autonomia e a solidez com que valores aparecem é quase uma ilusão de ótica, da mesma forma que a crença na solidez do meu “eu” e das minhas narrativas.
Já que a realidade é mudança, movimento, defender valores estáveis e verdadeiros acaba sendo um grande esforço, um grande gasto de energia, simplesmente um investimento que é feito e refeito a cada segundo, caso contrário a dúvida e a instabilidade podem aparecer. A esquerda, ao constatar o movimento das coisas, e seu ritmo, apenas acompanha um processo natural de mudança, enquanto a direita, ao contrário, precisa de muita energia para barrar esse mesmo movimento, para garantir a estabilidade de mundo que não parar de se transformar.
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