“Lunetas para espaço aberto”, uma encenação solo integrante da pesquisa de doutorado (PPGAC/UFBA) da atriz, pesquisadora e professora de teatro, Lílith Marques, que além de atuar, assina também a própria encenação e a dramaturgia, é um convite ao público para olhar com mais atenção e poeticidade para a tríade de histórias que são desenvolvidas em cena, mas sugere irmos além: visitarmos nossas próprias memórias. É como se pudéssemos tomar em nossas mãos com uma certa ansiedade uma luneta que amplia e aguça nossos sentidos e percepções para conhecermos três personagens, três visões de mundo, três arquétipos. Suzana, a criança curiosa que representa o arquétipo da infância, Kassandra, o mito grego, que representa a intuição, e Lilith, o mito da mulher originária, o olhar para dentro de si permeado pela história da atriz.
A peça é toda entremeada por poesias, relatos biográficos, depoimentos, memórias e as referências aos mitos acima citados. A dramaturgia é lírica e tecida a partir da inclusão de trechos de poemas de poetas baianos e brasileiros como Adélia Prado, Alba Liberato, Cleise Mendes, Lita Passos, Manoel de Barros, Sônia Rangel e do português Fernando Pessoa. A atriz e encenadora valeu-se das referências mitológicas de deusas para refletir sobre o feminino, utilizando também suas memórias e experiências pessoais de maneira poética e reflexiva.
A constituição do cenário foi disposta em palco circular contendo objetos suspensos e um tecido acrobático estendido no centro da cena. Nesse sentido, a simbologia do círculo representa eternidade, perfeição e divindade, pois não tem nem princípio nem fim e nos remete a expansão do tempo, movimento, união e plenitude além de representar o ciclo da vida.
No que concerne à apreensão da obra pelo público, as imagens do inconsciente vão se amalgamando à medida que se desenvolve a história e, nos guiam como uma espécie de mapa que é orientado pelo jogo presente na narrativa proposta, ou seja, as escolhas dos objetos, sejam os suspensos (flor, tecido acrobático, máscara, espelho, bolsa), como também os outros presentes no palco (flor, sementes vermelhas, frutas), associados às imagens surgidas por meio do estímulo às memórias, nos incitam a fruir o conjunto cênico não apenas como testemunhas, mas também com cocriadores do universo da história, por nos fisgar e produzir o acesso espontâneo ao nosso imaginário e a alguns arquétipos universais.
A pesquisa da doutoranda se traduz em cena quando nos estimula a todo o tempo a interagir e nos desnudar também, a enxergarmos além do óbvio. A condução da narrativa, nos impele a visitar nossas memórias mais antigas e isso nos reconecta produzindo uma empatia com o aqui e agora da encenação, entremeada de imagens que aguçam nossa imaginação e reforçam o poder da poesia quando a atriz afirma a linda expressão de Manoel de Barros, de que “é preciso transver o mundo”. Ali, naquele momento, eu me senti um navegador que tem o poder da transvisão e, diante de tempos tão difíceis em todo o planeta, além de muita coragem para continuarmos na luta, há que se ter uma luneta para ampliar nosso modo de ver o mundo como forma de resistência.
Ela começa a sua narrativa em cena numa alusão ao poeta Carlos Drummond de Andrade quando diz: “Quando eu nasci, um anjo esbelto daqueles que toca trombeta anunciou: vai carregar bandeira”. E já traz no discurso presente na segunda parte do texto, o tema que norteará o discurso do solo, o feminino: “cargo este muito pesado para uma mulher, esta espécie ainda envergonhada”.
Em seguida afirma que seu “corpo é uma porta para o universo”. O corpo é a materialidade mais evidente que legitima sua existência. E percebemos que ela vibra nessa consciência, pois inicia o espetáculo em movimento de dança, de alegria e congraçamento num samba alegre que anuncia sua reverência à vida, ao existir. E se desvela aos poucos correlacionando o espaço cênico com o Universo, seu corpo em presença cênica e evocação ancestral borbulhando as reminiscências mais remotas. Sua relação com o corpo é citada em outros trechos poéticos como quando ela afirma: “Minha pele se rasga sobre o figurino. Meu corpo é o meu cenário. Minha linguagem é a minha carne”.
Emocionante quando a atriz Lílith revela-se diante do público para contar sua relação de amor pelas palavras e, nesse tecimento de memórias pessoais vai se expressando por meio das lembranças de sensações dos sentidos e nos convoca a rever o momento precioso em que ela, pequenina, aos nove meses, faz ressoar no universo a sua primeira palavra articulada: “água”. Foi essa palavra fluída que sacia a sede, que alimenta a vida e que é considerada como um dos quatro elementos básicos para a constituição da vida, que ela retoma nas memorações, as suas origens. O que me fez associar esse momento da narrativa à teoria de Tales de Mileto para explicar o nascedouro do mundo. Ele acreditava ser a água, a substância primigênia, origem de toda a matéria e vida.
Em um dos últimos momentos do espetáculo se expande a interação com o público, pois dentro do jogo cênico, Lílith nos convida a brincar mais uma vez. O jogo: uma versão do pau-de-fitas coloridas. Ela se apresentava diante de algum integrante da plateia numa atitude de reconhecer quem realmente é quando dizia seu nome e entregava uma fita para a pessoa, que por sua vez, também se apresentava. Como num diálogo, ela se colocava no lugar do outro ao se apresentar como sendo a pessoa que recebeu a fita, propondo que a pessoa também fizesse o mesmo. Ficou claro para mim o símbolo potente desse jogo, um reconhecimento e pertencimento de que, todos somos humanos e, juntos podemos criar muito mais. Sinaliza a importância do coletivo para a existência quando ela afirma que “o ser humano é ponte” e enfatiza o quanto a arte também é coletiva. No final do jogo forma-se um lindo arco-íris.
Como espectador percebi que o jogo me provocou a reviver minhas próprias memórias mergulhando fundo no imaginário. O que me chegou em muitos momentos como uma espécie de ressignificação, de renascimento e de expansão do olhar para observar a inocência e a curiosidade tão caras a Suzana, deixando fluir a criança que existe em mim, mas sem perder de vista a intuição proposta por Kassandra, tão importante para a criação e para a existência, aprofundando a busca pelo autoconhecimento ao olhar para dentro de mim mesmo, que é proposto por Lílith, a mulher originária e mantendo-me íntimo das palavras para reviver minha origem e viver sempre a minha imaginação como tão bem foi apresentado por Lílith no palco. “Viver a imaginação é a nossa realidade mais profunda”, já afirmava Nise da Silveira.
E poder participar dessa história, das origens da artista contando também a origem do feminino, da “esfinge condição de ser mulher”, sua força e sua poesia, por conseguinte referenciando também a origem do mundo, tudo isso me fez reconectar com o sagrado da existência, me despertou para a possibilidade de enxergar além e assim me constituir como humano ao ver refletido no outro a minha própria humanidade.
*Esteve em cartaz entre os dias 01 e 07/08/2019.
FICHA TÉCNICA
Encenação, texto e atuação: Lílith Marques
Orientação de Pesquisa PPGAC: Sonia Rangel
Produção: SC Produções (Tacira Coelho)
Assistência de Produção: Camila Guilera (A Panacéia) e Thais Patez
Comunicação: Nany Lima Comunicação e Cultura
Midias sociais: Jande Marques
Design, fotos, site: Jande Marques
Filmagem: Maicon Alisson
Iluminação: Tacira Coelho
Operação de Luz: Thais Patez e Rangell Souza
Técnico do Espetáculo: Rangell souza
Cenário e Figurino: Zuarte Jr.
Caracterização, cabelo e Maquiagem: Nayara Homem
Músicas: Amannda Mattos
Música “Arco-íris”: Lílith Marques
Preparador Musical: Mateus Soares
Operação de Som: Lucas Modesto
Confecção e orientação de Máscara: Joice Aglae
Orientação de Tecido: Aline Amado
Costura figurino: Letícia Santos, Guida Maria
Costura cenário: Saraí Santos
Cenotécnico: Adriano Passos