“Estamos em pleno século XXI, é preciso ter uma visão aberta, uma visão tolerante, e distinguindo sempre religião e Estado, preservando a liberdade de expressão. Esta é intocável em um Estado Democrático, mas em um Estado totalitário, religioso, não”.[1]
Quinta-feira passada, 5 de setembro, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, mandou fiscais e seguranças da prefeitura recolher HQ dos Vingadores – A Cruzada das Crianças – da Marvel Comics, por ter dois personagens num beijo homoafetivo, na Bienal do Livro. Este evento começou no dia 30 de agosto e encerrou-se neste domingo. Segundo o próprio prefeito “a história teria conteúdo sexual para menores e deve ser comercializada e embalada em um plástico preto e lacrado com aviso sobre seu conteúdo”. No twitter, ele ainda disse o seguinte: “a prefeitura está protegendo os menores de idade”. Na verdade, foi uma atitude policialesca num evento cultural, lembrando os tempos da Ditadura no Brasil. Um claro ato de censura e homofobia, que é considerado crime.
Qual o conteúdo sexual que está no HQ em questão? Alguém poderia dizer? Pessoas se beijando não é algo indesejado ou libidinoso num Estado Democrático de Direito. O problema é o beijo gay e não o ato de beijar. Outros tantos livros de pessoas hetero se beijando não foram confiscados, porque não são considerados imorais, estão dentro “do padrão da família de bem”. Como disse o Ministro do STF, Gilmar Mendes: “Salienta-se que em nenhum momento cogitou-se de impor as mesmas restrições a publicações que veiculassem imagens de beijo entre casais heterossexual”.[2]O prefeito associa homossexualidade com algo sujo, perigoso, indecente, anormal, antifamiliar. Essa é a preocupação do representante político e religioso, que confunde Estado e Religião (vide o processo que responde em denúncia do Ministério Público por, supostamente, beneficiar igrejas evangélicas em algumas isenções públicas).
Crivella só entende moral familiar como uma configuração baseado no gênesis hebraico: universal e a-histórico, que valerá para sempre até o fim dos tempos, em qualquer lugar. Ok, muita gente até crê nisso. Mas é necessário um esforço para que num espaço púbico, em uma República, laica, calcada na defesa do indivíduo, homossexuais, heterossexuais ou bissexuais tenham os mesmos direitos e deveres, as mesmas oportunidades e a mesma liberdade de construir família, seja ela qual for. Isto precisa ficar claro. Não aceitar isso é ferir a Carta Magna que, lembremos, é laica. Aqui não é Irã, Arábia Saudita, Iêmen. Não estamos numa teocracia!
Desde 2011, lembremos, o STF decidiu, através de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o reconhecimento da união estável para casais do mesmo sexo, fazendo valer o artigo 5° da Constituição Brasileira: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Logo, o reconhecimento de entidade familiar homoafetiva.
A Bienal do Livro se recusou a acatar a medida proposta pelo prefeito, com a excelente nota oficial: “este é um festival plural, onde todos são bem-vindos e estão representados. Inclusive, no próximo fim de semana, a Bienal do Livro terá três painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+. A direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, ele tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor". [3]. Além do mais, de acordo com a OAB do Rio, a prefeitura não tem poder para recolher os exemplares, sendo uma atribuição da Justiça se houver desrespeito ao Estatuto da Criança e Adolescente (ECA).
Na sexta feira, no dia 6 de setembro, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, através do desembargador, Heleno Ribeiro Pereira Nunes, emitiu uma liminar impedindo a prefeitura de fiscalizar os livros censurados. “alguns livros da Bienal espelham os novos hábitos sociais, sendo certo que o atual conceito de família, na ótica do STF, contempla várias formas de convivência humana e formação de células [...] tal postura reflete ofensa à liberdade de expressão constitucionalmente assegurada", disse o juiz.[4]
No sábado, outro desembargador, Cláudio de Mello Tavares, presidente do TJ, suspendeu a liminar que impedia o recolhimento de exemplares de obras com temática LGBT+ que não estivessem lacradas e com uma advertência para o conteúdo. Segue a infame justificativa do jurista, que diz não se tratar de censura, mas "ser inadequado que uma obra de super-herói, atrativa ao público infanto-juvenil, a que se destina, apresente e ilustre o tema da homossexualidade a adolescentes e crianças, sem que os pais sejam devidamente alertados” [...][5]
No domingo, o Superior Tribunal Federal, por meio do Ministro Dias Toffoli, derrubou a liminar do TJ do Rio. Foi a procuradora geral da República, Raquel Dodge (que sairá em breve do cargo), que fez o pedido de anular a decisão de segunda instância da ex capital brasileira. Entre outras palavras, Toffoli escreveu: “Findou por assimilar as relações homoafetivas a conteúdo impróprio ou inadequado à infância e juventude, ferindo, a um só tempo, a estrita legalidade e o princípio da igualdade". [6] o Ministro Gilmar Mendes também suspendeu o efeito da decisão do TJ.
É bom lembrar que o desembargador e juiz Cláudio de Mello Tavares tem um histórico homofóbico. Em 2009, numa ação popular contra o Estado do Rio Janeiro, que destinou recursos à Parada Gay, em 2002, disse publicamente: “não se pode negar aos cidadãos heterossexuais o direito de, com base em sua fé religiosa ou em outros princípios éticos e morais, entenderem que a homossexualidade é um desvio de comportamento, uma doença, ou seja, algo que cause mal à pessoa humana e à sociedade, devendo ser reprimida e tratada e não divulgada e apoiada pela sociedade”.[7] Para ele é algo patológico. Inclusive, na época, usou o termo “homossexualismo” várias vezes.
O defensor de Crivella, o pastor Silas Malafaia, vociferando e soltando fogo pelas ventas, nas redes sociais, atacando juristas, imprensa e as manifestações civis, citou que a venda de HQs com conteúdo homossexual atenta contra o Estatuto da Criança e Adolescente. Especificamente, se refere ao artigo Art. 78. “as revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo. Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca”. O referido pastor ainda cita o art. 218 do código penal: “ induzir alguém menor de 14 anos a satisfazer a lasciva de outrem”, e o art. 247 inciso 2, que fala sobre abandono intelectual referente à vigilância de menores de 18 anos: “ frequente capaz de espetáculo de pervertê-lo ou de ofender lhe o pudor, ou participe de representação de igual natureza”.
A pergunta que vos faço: o que é conteúdo ou material improprio e inadequado a crianças e adolescentes? O que é mensagem pornográfica e obscena? O que seria ato um ato lascivo? O que é ofender o pudor? Um beijo na boca qualquer? Não! É um beijo entre pessoas do mesmo sexo, considerado imoral e impróprio. Por quê? Porque escolhem seguir a mesma ideia insana que Bolsonaro proferiu em 2011: “prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”.[8] Portanto, para eles não existe uma relação afetiva e amorosa entre pessoas de mesmo sexo. É aberração da natureza. Lixo moral. Antinatural. Seria menos pior tolerar a violência do que a homossexualidade. O que parece, ao meu ver, é um recalque. Freud explica.
Mentalidades assim desprezam ou ignoram as liberdades individuais: não aceitam a pluralidade, a diversidade social, sexual, religiosa e as escolhas de cada um. Não toleram os Direitos Fundamentais e nem os Direitos Humanos. Crivella, Claudio Tavares, Bolsonaro e todos os seus apoiadores querem um Estado Teocrático, liderado por um homem “enviado pelos céus”, no qual a razão, o direito e a moral devem ser subordinados à bíblia e seus fundamentos dogmáticos.
No fundo, infelizmente, essas pessoas que ocupam o Estado de Direito desejam acabar com a Constituição democrática e implantar uma sociedade baseada no autoritarismo e patriarcalismo, passando por cima de tudo que seja contrário aos seus valores sectários. Não conseguem admitir que todos somos iguais e livres perante a lei sem distinção de qualquer natureza, e que ninguém pode ser subordinado a um modelo universal imposto por uma pessoa ou um grupo.
Leitores, não podemos tolerar esse tipo de comportamento, que acredita haver só uma forma de viver, de entender o mundo, um só leque de valores, uma só forma de pensar. Tal é a atitude revolucionária reacionarista, inculcada em diversos grupos sociais, desejosos de retornar a um passado suspostamente melhor, adoradores de uma autoridade suprema e esnobes aos valores democráticos, liberais e republicanos. Estamos a mercê de um grande retrocesso, que nega a diversidade, a reflexão, a crítica, a livre escolha, a arte, ciência, filosofia. Completo obscurantismo!
Até a próxima!
Fonte da imagem: https://www.bastidorpolitico.com.br/brasil/por-que-ninguem-mandou-prender-crivella-por-homofobia/
Notas
[1] Fala do Ministro do STF, Marco Aurélio. https://exame.abril.com.br/brasil/nao-vi-nada-de-mais-diz-marco-aurelio-sobre-livro-criticado-por-crivella/
[2] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/09/08/gilmar-mendes-manda-suspender-decisao-que-permitia-apreensao-de-livros-na-bienal-do-rio.ghtml
[3] https://veja.abril.com.br/entretenimento/bienal-diz-que-da-voz-a-todos-os-publicos-e-nao-ira-recolher-hqs-lgbt/
[4] https://www.otempo.com.br/brasil/juiz-proibe-prefeito-do-rio-de-intervir-na-bienal-e-ve-censura-1.2232466
[5] https://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2019/09/nova-decisao-do-tj-rj-pede-para-recolher-livros-com-tematica-lgbt-para-o-publico_85262.php
[6] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/09/08/toffoli-suspende-decisao-judicial-que-permitia-apreensao-de-livros-na-bienal-do-rio.ghtml
[7] https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2019/09/juiz-que-autorizou-censura-na-bienal-ja-disse-que-heteros-tem-direito-de-ver-gay-como-doente-ck0a46lg800ja01qo36mzjmr4.html
[8]https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-prefiro-filho-morto-em-acidente-a-um-homossexual,cf89cc00a90ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html