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"Das ‘coisa’ dessa vida" – A potência do desejo de existir e a reinvenção do humano.


Foto: Caio Lírio


Desde o anúncio das primeiras divulgações sobre o espetáculo, eu me senti instigado a assisti-lo. E fiquei bem inquieto, pois tentei na primeira temporada, mas não foi possível e somente agora eu consegui.* A vida tem dessas coisas. “Tudo acontece quando tem que acontecer”. E assim, ao chegar ao teatro, fui muito bem recepcionado e convidado a conhecer o universo de Nalde, que se desnuda diante do público compartilhando suas experiências e memórias.


“Da porta para dentro” me senti aconchegado no ambiente e nem parecia que eu estava no teatro. O ator Ricardo Fagundes entra em cena. Faz isso tão naturalmente e fala com o público como se tivesse realmente só informando o serviço do teatro. Interage um pouco com a plateia que fazia o burburinho comum antes de começar as apresentações de teatro.


A cena começa antes mesmo de começar. O ator de uma maneira sutil e concentrada chama Nalde para a lida. O teatro de repente se transforma num bar. Instala-se a ambientação cênica sem o ritual tradicional de tocar o famoso terceiro sinal e sem delimitação marcada entre palco e público: as luzes da plateia são mantidas acesas e nos envolve nessa ambientação – um cenário simples e funcional, criação de Zuarte Jr. –, ou seja, estamos mesmo no bar junto com a personagem, cuja canção-tema é composta por Rebeca Matta e Luisão Pereira.


Impressionante o trabalho de entrega do ator, a leveza e segurança, a organicidade e visceralidade com que ele “chama” o personagem para brincar em cena. A sutileza da instalação é primeiro estimulada pela presença do ator no espaço cênico, mas o mais impressionante é o momento que ele instala o personagem pela mudança do tom de voz e assim nos faz perceber que o espetáculo já havia começado. A transformação se dá numa passagem com nuances quase imperceptíveis do timbre e do sotaque.


A performance do ator em cena é potente, a fluidez de movimentos e gestos, sua intensidade e desenvoltura corporal, sua disponibilidade e entrega ao personagem me comoveu muito, principalmente a capacidade de transitar do riso ao choro, da comédia e do humor ao drama, de modo sutil e natural.


A capacidade de elevar ao máximo o humano por meio de uma personagem, um modo de contar história tão despojado, tão simples, mas pungente e intenso. Isso chegou até meu íntimo como um presente e confesso que segui os conselhos da avó dele: eu ‘destampei’ e naquele instante me senti Nalde. Ele flui em cena magnifico e nos encanta com a sua história.


Presenciar essa história sendo contada por Nalde/Fagundes é um deleite sem precedentes, ver nos gestos e palavras esse vigor e força cênica pulsando inteiros numa realização repleta de desejo de viver, é realmente um acontecimento único.


Sensibilidade em forma de narrativa, uma história repleta de poesia, tocante e ao mesmo tempo um estímulo a refletirmos sobre nossas semelhanças e diferenças. A dificuldade de confessar que ama e de como isso nos faz sofrer. O desejo que, muitas vezes, tem que ser escamoteado por causa de convenções sociais impostas. O medo de encarar a vida em certos momentos, mas acima de tudo, Nalde traz em si, a coragem de superar obstáculos com muita alegria e determinação.


Nalde expõe as agruras, dores, dissabores, a luta pela sobrevivência, o preconceito sofrido por ser diferente, mas também mostra a força e a poesia que podem existir. A vontade de viver e de ser da personagem, é emocionante. Ele nos leva para passear num universo que permeia a comédia, o drama, o humor tudo isso com muita poesia, sensibilidade e, como ele mesmo diz: “com toda a jeitosidade”. Em sua simplicidade, ele nos convida a brincar de ser e nos apresenta seu modo de existir genuíno e verdadeiro. A vida querendo explodir para fora de todas as lógicas da aparência superficial.


O ritmo equilibrado e dinâmico do texto, a linguagem simples, mas não simplória, resultado de uma dramaturgia muito bem escrita por Gildon Oliveira, que traz uma narrativa bem amarrada, com muita poesia, repleta de imagens e construções dramáticas bem resolvidas, com algumas pausas importantes e necessárias, nos convidam à reflexão e nos acertam em cheio a emoção. Os silêncios, por vezes profundos, mas cheios de vivência e presença, nos sinalizam a vida vibrando e querendo transbordar.


A direção de João Miguel é muito afinada, precisa e delicada. Percebemos um trabalho muito fluido, uma sintonia entre intérprete e direção e sobretudo isso se amplia para toda a equipe envolvida na construção do espetáculo. Vemos em cena a liberdade do ator em criação. Como João é um excelente ator, sua sensibilidade e senso de observação favorecem, e muito, a performance da cena. Sente-se a generosidade, o cuidado de deixar a criação fluir e, acima de tudo, nota-se o amor em cada pausa, cada tom de voz, cada gesto. Que lição de teatro! Uma aula de como se faz teatro com alma e coração.


Nalde me ensina tanto quanto nossas avós e mães, pois está cheio, sua alma é repleta de amor e verdade. A forma bem-humorada e descontraída de viver a vida e sua coragem transpira pelos poros. Ele não se deixa abater. Ele resiste. Ele é amor e esperança. Ele tenta deixar mais leve o pesado fardo da existência. Sua fé na vida e no existir é imensurável.


Nalde pulsa vida ao revelar sua essência para o mundo. E como as flores que ele mesmo acredita serem elementos que dão sentido à vida, símbolos da própria existência, sementes enxertadas em nossos corações para nos deixar florir como existência em congraçamento, saí do teatro prenhe de desejo de viver.


O espetáculo estará em cartaz no Festival Internacional Latino Americano de Teatro da Bahia - FILTE BAHIA. Serão 3 apresentações: dia 24/09 às 16h no Centro Cultural Plataforma. Gratuito. E dias 28 e 29/09 às 19h no Centro Cultural Barroquinha.



*Assisti ao espetáculo na segunda temporada no Teatro Sesi Rio Vermelho.

Foto de Caio Lírio.

Ficha-técnica

Direção: João Miguel

Texto: Gildon Oliveira

Atuação: Ricardo Fagundes

Cenário: Zuarte Jr

Iluminação: Luiz Guimarães

Canção-tema do personagem: composta e interpretada por Rebeca Matta, participação de João Miguel e arranjos de Luisão Pereira.

Assessoria de imprensa e redes sociais: Maurício Ferreira

Produção: Contra Regra Produções.


















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