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PRECISAMOS DE UMA SOCIOLOGIA NÃO-CRÍTICA!!!




Hoje aconteceu o Fórum de São Lázaro aqui na Universidade Federal da Bahia (UFBA), um evento acadêmico que reúne estudantes de vários cursos, como história, ciências sociais, filosofia, psicologia, etc. O objetivo era debater os temas do momento, em especial o ataque do governo ao ensino superior, além de tudo que envolve esse universo, como pesquisas, viagens, bolsas e tantas outras coisas. Embora simples, o Fórum foi muito bem recebido, e bem organizado, o que é uma ótima iniciativa. Com o calor dos debates, e das altas temperaturas de Salvador, misturado com um clima político tenso, muitos pegaram o microfone e se aventuraram a falar. Indivíduos negros, brancos, homens, mulheres, trans, gays, ou seja, todos tiveram um pequeno tempo de fala, uma chance de deixar claro suas ideias, frustrações e estratégias de resistência. Apesar da importância de tudo o que foi dito, uma coisa me incomodou, um detalhe que talvez tenha passado despercebido por muitos naquele pátio. No meio de tantos argumentos, de tantas vozes diferentes, tantos corpos alternativos, algo permanecia no discurso, um tipo de mancha insistente, quase uma cicatriz de nascença: “NÓS, ESTUDANTES DE ESQUERDA, SOMOS CRÍTICOS!!!” Parece tão óbvio dizer isso, parece tão simples e previsível, mas essa inocente frase não é tão inocente assim, carregando consequências graves. Em momentos em que pontes precisam ser construídas, em momentos em que alianças precisam ser feitas, essa frase acaba soando pretensiosa demais, aristocrática demais, criando assim um abismo perigoso entre NÓS e o OUTRO.


Perdemos as eleições do ano passado, e isso é meio que óbvio, mas não ficou muito claro o motivo desse deslize, o motivo da ascensão de um líder não apenas conservador, mas reacionário, o que levanta muitas dúvidas, acompanhadas de um choque até hoje difícil de entender. Talvez, e isso é uma hipótese que lanço na mesa, perdemos as eleições justamente porque fomos CRÍTICOS, nos sentimos CRÍTICOS. Se eu sou o emissário da verdade, se eu sou a personificação do pensamento, um representante dos tribunais da razão kantiana, por que ouvir o Outro, principalmente quando esse Outro é um povo alienado que não entende a si mesmo?


Seu José, padeiro da esquina, homem pouco instruído, mas muito ativo, queria no final do ano passado falar sobre segurança pública, já que sua padaria era constantemente assaltada. Joana, cabeleleira, cansada de ganhar tão pouco enquanto políticos viviam nadando em dinheiro, quis apenas discutir corrupção, porque acreditava na importância desse tema. José e Joana tinham demandas, tinham interpretações, tinham objetos que eram relevantes. José e Joana queriam falar sobre Segurança Pública e Corrupção, mas nós, as CRIATURAS CRÍTICAS, os emissários da razão, recusamos tudo isso, já que somos nós que definimos a relevância das coisas, a prioridade dos temas. Em um mundo de diálogos, em um mundo onde alianças precisam ser feitas, esse lema clássico ‘’Somos críticos!” apenas aprofunda ainda mais o abismo entre nós e os outros, entre nós, acadêmicos, e o povo. Essa postura vaidosa, essa crença sutil em nossa superioridade, acabou nos cegando, ao mesmo tempo que ficamos surdos aos pedidos feitos, mesmo quando são gritos de desespero. Se eu acredito que sou apenas um emissário da razão, e de toda sua verdade embutida, se eu levo muito a sério a linguagem que carrego comigo, eu não preciso ouvir ninguém, eu não preciso me submeter ao corpo do Outro. Associar o pensamento Crítico a um determinado grupo, como se a racionalidade fosse um privilégio de alguns, não apenas é um engano grave, mas uma atitude perigosa. É preciso que a razão seja vista, como em Hegel, não como a propriedade de um sujeito, como imaginava Kant, mas uma característica do próprio mundo, um potencial carregado por qualquer um, por qualquer coisa, já que todos enfrentamos problemas, contradições e angústias. Eu sei que é difícil de acreditar, mas as pessoas lá fora são mais inteligentes e relevantes do que a gente poderia supor.


Precisamos um pouco do riso do Zaratustra nietzschiano, um riso humilde, já que não é direcionado a alguém, mas a nós mesmos. Nós, CRIATURAS CRÍTICAS, levamos muito a sério quem nós somos. Precisamos ter um pouco mais de humildade, um cuidado maior na hora de definir o conhecimento e traçar suas fronteiras. Talvez precisamos de menos epistemologia e mais ontologia, a certeza de que todos estão em um mesmo mundo, com problemas comuns e desafios compartilhados. Se a esquerda precisa se redefinir, e isso é um fato, ela precisa também abandonar esse grito de guerra tão aristocrático. Nós não somos críticos, não somos especiais, somos apenas pacotes de experiências, criaturas que sofrem e que buscam estratégias para lidar com o que acontece.


O que chamamos de criticidade nada mais é do que um esforço criativo de sobrevivência, no final das contas, uma estratégia prática, e não uma virtude que deve ser esfregada na cara de alguém. Não somos mais nobres, não somos mais verdadeiros, somos apenas um corpo tentando ao máximo fazer o possível, como, inclusive, todos lá fora. Tentamos compensar nossas falhas, nossas frustações, novas raivas, ou seja, estamos lançados no mundo e “fazemos o que dá para fazer”. Ao invés de enxergar o aluno de ciências sociais como uma mente pensante e verdadeira, por que não definir como um corpo que se afeta? Nesse sentido, não existe abismo nenhum entre Eu, o sociólogo, e José e Joana... muito pelo contrário!! Somente através desse corpo, desse substrato em comum, posso me identificar com esses dois personagens ficticios, mas reais... posso, portanto, ter um cuidado maior de escuta, o que acabou sendo um tipo de conselho psicanalítico esquecido por muito tempo. Claro que a ideia não é sempre concordar com o outro, mas abrir o mínimo de espaço, criando um pouco de brecha. Precisamos partir de premissas mais agregadoras, de espaços de convergência. Não é hora de querer se diferenciar, não é hora de manter abismos, muros, etc. No máximo, precisamos de portas, claro, mas portas que podem ser acessadas, caso alguém queira bater. Portas que podem ser abertas, ou não, mas que sempre permanecem lá, disponíveis. Precisamos que José e Joana saibam que nós, da esquerda, estamos do outro lado da porta aguardando, caso queriam bater um papo. Quando ela for aberta, cuidado! Antes de apontar dedos, antes de implantar rótulos, apenas escute, mesmo que depois discorde. Caso contrário, se recusamos ouvir as queixas de José e Joana, provavelmente eles cairão na lábia do primeiro que passar, por mais maluco, estranho e perigoso que seja. Às vezes uma pessoa não quer nada demais... muitas vezes quer apenas ser ouvida!!


REFERÊNCIA DA IMAGEM:


https://amenteemaravilhosa.com.br/tipos-de-pensamento-intuitivo/



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