A Rotten Tomatoes, um dos sites de crítica de cinema mais famosos do mundo, apresentou um traço interessante nas ultimas semanas, uma característica rara, ao menos quando se percebe com calma os contornos da situação. Afetados por tanta polêmica ao redor do filme “Coringa” (Joker), dirigido por Todd Phillips, além do impacto do leão de ouro em Veneza, críticos e público leigo foram juntos até o cinema nessa estreia do dia 03 de outubro (Brasil), sentaram nas mesmas poltronas, olharam para uma mesma tela branca, provavelmente comendo o mesmo tipo de pipoca engordurada (típica de cinema). Apesar de um percuso parecido, apesar de todo cenário montado e previsível, produziram reações não apenas distintas, mas opostas. Sem dúvida esses dois grupos raramente concordaram entre si ao longo das décadas, mas a polarização foi muito curiosa dessa vez, sendo impossível desconsiderar o que ela representa: 58% de aprovação pelos críticos, contra 90% pelo público leigo (dados da primeira semana). O que justifica esse abismo perceptivo? Seria talvez por acaso ou existe aqui alguma mensagem importante nos bastidores de tanto barulho?
Além de algumas críticas dispersas, mas agressivas, direcionadas a performance de Joaquin Phoenix e aos filmes de super herois (críticas muito superficiais e sem fundamento, como aquelas do site TIME), uma delas, em particular, ganhou destaque. Muitos críticos afirmaram que Todd Phillips reproduziu os passos do diretor Martin Scorsese, em especial envolvendo filmes como Taxi Driver (1976) e o rei da comédia (1982), o que transformaria o filme "Coringa" numa cópia barata e sem qualquer originalidade, seja no enredo, idêntico ao filme de 1976, seja na forma, idêntica ao filme de 1982. Claro que essa acusação esbarra em dois problemas óbvios: 1) a estética de um diretor não é uma propriedade reservada, mas um produto coletivo usado e ressignificado por todos. Por esse motivo, o uso de uma estética de um diretor por outro não apenas faz sentido, como é a regra. Alguém condenaria os filmes “Get Out” e “Us” de Jordan Peele por terem traços da estética do suspense de Hitchcock ou condenariam todos os filmes sobre tubarão e alienigenas por reproduzirem a estética dos diretores Spielberg e Ridley Scott? 2) Scorsese trabalhou com Todd Phillips nos primeiros instantes da produção do filme “Coringa”, o que justifica algumas das suas digitais na superfície da obra.
Apesar da acusação de plágio ter sido uma constante na crítica dos críticos, existe um motivo mais sutil nos bastidores, um detalhe interessante, um tipo de informação muito contrangedora e, ao mesmo tempo, vaidosa. Os críticos encararam como uma ofensa o uso de uma estética scorsesiana em um filme popular, uma espécie de afronta ao edifício do universo cinematográfico. É basicamente o que acontece com a classe média em aeroportos hoje em dia, ao menos aqui no Brasil. O sujeito branco de classe média, acostumado a ter um espaço todo seu, sem nada inconviente ao redor a não ser uma relaxante viagem embalada com um performático serviço de bordo, observa com olhos assustados o barulho produzido pelas classes populares, com seus excessos de bagagem, crianças correndo pelos corredores, além de outros estereótipos que infelizmente precisei lançar mão. Ou seja, a crítica, ainda que não declare, depende da existência de um certo abismo estético, uma fronteira entre eles e o público, numa clara tentativa de preservar sua própria identidade.
Ao invadir seu território, ao perceber as pegadas do público leigo na grama da linguagem cinematógrafica, o Crítico sente um incômodo, uma violação, como se algum tipo de ofensa tivesse sido cometida. Isso implica, em outras palavras, não apenas a existência de dois mundos diferentes, mas de duas esferas que PRECISAM operar de formas diferentes, quase como uma estrutura de classe cinematográfica. O crítico teve seu ego ferido, sua vaidade comprometida, ao mesmo tempo em que o "povo" caminha tranquilamente pelos corredores do “aeroporto Scorsese”. “Deixem o público com seus filmes de entretenimento barato”, diz o inconsciente do Crítico. Ele queria viajar tranquilo, apenas tendo acompanhantes do seu nível, mas foram privados desse privilégio graças a ousadia de Todd Phillips.
O drama mais psicológico, característica de diretores como Scorsese, Lars Von Trier e Almodóvar, além de correntes como neorrealismo italiano, e tantos outros, sempre foi reservado a um cinema marginal e independente, restando ao público leigo apenas filmes “superficiais”, com narrativas mais simples, além de uma estética também mais simplificada, como os romances adocicados, sitcoms ou filmes de ação e super heróis. Se, por acaso, você busca filmes de qualidade, com certeza nao é ao shopping que você vai, muito pelo contrário. Existe um circuito privado, mesmo quando é público, ou seja, privado no sentido de algo restrito. Esse circuito carrega critérios, códigos de vestimenta, formas de falar, referências, palavras, conceitos, etc. Assistir a um filme neorealista, por exemplo, não é apenas assisrir uma sequência de imagens em movimento projetadas em uma tela branca, mas aceitar todo esse circuito de fundo, todo esse conjunto de expectativas. Em outras palavras, se você diz que assiste Rossellini, Hitchcock ou Lars Von Trier, eu, supostamente, já sei muito sobre quem é você, sobre sua identidade. Assistir um filme alternativo nunca é um simples gesto inocente, mas uma forma de afirmação, o que demanda a existencia de um circuito paralelo ao popular, um circuito que não se reduz ao que acontece do outro lado.
A indústria cultural passou por grandes transformações nos últimos tempos, uma verdadeira avalanche em seus contornos originais, ainda que os Críticos não queiram enxergar, permanecendo no mesmo mundo da década de 40, quase como se o universo cinematográfico tivesse congelado. A indústria cultural contemporânea, sem dúvida, ainda opera dentro de uma gramática do desejo, como imaginava Adorno, ou seja, numa busca por um vinculo desejante entre sujeito e objeto e sua consequente imersão, embora as coisas tenham mudado um pouco (ou seria bastante?). O circuito de entretenimento ganhou novas características, apresentando uma forma singular de linguagem, como acontece em filmes e séries populares, a exemplo de Black Mirror, Jessica Jones, passando por Inception e Dunkirk, do diretor Christopher Nolan, ou ainda filmes como Logan, dirigido por James Mangold, ou até mesmo desenhos infantis como Gravity Falls, Steven Universe e Rick and Morty. Essa linguagem mais complexa, anti-heroica, digamos assim, antes reservada a filmes alternativos e independentes, agora invade os shopping centers e outros espaços menos reservados. Isso não significa, claro, que os indivíduos estão mais espertos, ou reflexivos, mas apenas que a percepção do espectador passa por uma mudança significativa, o que demanda um cuidado maior nas análises e em suas particularidades.
O filme "Coringa" é uma verdadeira obra de arte, não importa em qual frame você tenha pausado, seja por conta da performance sensacional de Joaquin Phoenix, ou da própria direção de Todd Phillips, ou ainda por conta da sua trilha sonora impactante e noturna, temperada por um violoncelo insistente, ou até mesmo por causa da sua fotografia ousada e dramática. O filme, sem dúvida, é incrível, mas isso independente dos temas trabalhados, independente do que pode ser extraído ou interpretado. Essa obra tem méritos próprios, ainda que o Crítico não aceite, ainda que não reconheça o potencial da sua linguagem cinematográfica. Em sua visão platónica de mundo, não é possível que algo seja bom e popular ao mesmo tempo. Segundo o autor do Banquete, se, por acaso, a maioria gosta, se a maioria aplaude, algum problema deve ter. Sem dúvida, a indústria cultural contemporânea merece críticas (várias, na verdade!!!), principalmente no modo como administra o corpo e o desejo dos seus consumidores, mas é preciso entender esse novo circuito de coisas, essa nova forma de experimentar a arte.
REFERÊNCIA DA IMAGEM:
https://medium.com/@ceticia/as-armadilhas-mentais-em-joker-2019-b6367097a72b