O texto que se segue tem um fundo escatológico. Mas talvez nem fosse necessário avisar, já que todo viver tem lá sua escatologia, não é mesmo?! Sigamos viagem, então.
Há alguns anos, numa repartição pública na qual eu trabalhei por um tempo, flagrei uma curiosa conversa entre trabalhadores responsáveis pela limpeza daquele prédio. Era um grupo formado por três mulheres e dois homens. Uma mulher que aparentava ter uns quarenta e poucos anos, de nome Lúcia*, disse, num tom de voz um pouco elevado: “todo dia, Dr. Gervaldo* larga o barro cinco da tarde!” Uma segunda trabalhadora chamada Flora*, que eu cria ser da mesma idade da primeira, quase que interrompendo a fala daquela, emendou: “E Dona Matilda*, que faz todo dia três horas. Vou lhe dizer, o intestino daquela ali bate certo!” E logo um dos rapazes, chamado Cléber*, aparentemente um pouco mais jovem que as duas, disparou, após uma longa gargalhada: “Oxe, pelo menos com esses daí não tem muita fedentina, porque Seu Teobaldo* deixa a zorra daquele jeito, uma carniça só!” A conversa se dava no estacionamento da unidade, onde, àquele momento, por volta das dez horas da manhã, havia pouco movimento, deixando-os à vontade para o tipo de papo e com direito a referências pessoais.
O grupo percebeu, após um tempo, que eu estava no meu carro (procurava por um pen drive para salvar umas planilhas, dispositivo que, como de costume, naquele dia teimou em brincar de esconde-esconde comigo), então mudou de assunto de maneira abrupta. Mas os poucos trechos da conversa os quais consegui escutar foram o suficiente para evidenciar o quanto a vida em civilização é uma estrutura de convenções morais e culturais que tem toda a sua pretensa grandeza e jogo de regras implodidos no imaginário grupal por falas como aquelas, ainda que de modo contingente, disperso e raramente de modo duradouro e absoluto (a não ser nos tensos momentos de revolução de costumes e/ou de revolução social e política).
Tratava-se de um grupo de trabalhadores considerados pela sociedade civilizada, tal qual era considerado o grupo dos garis por um certo apresentador caquético de telejornal, algum tempo atrás, pertencentes ao último degrau da escala social do trabalho. Porém, tal conjunto de homens e mulheres vivia ali um momento discursivo catártico, ao ressaltar a humanidade biológica nua e crua de Gervaldo, Matilda e Teobaldo, o primeiro, gestor da unidade, a segunda, coordenadora de um de seus setores centrais, enquanto o terceiro era o chefe do grupo do qual aqueles operários faziam parte. Na privada, esses senhores não estavam acima nem abaixo deles, mas enquadrados na mesma humanidade, para além das classes, das cores, dos grupos de status. Todo mundo é igual na hora excrementícia, ressaltavam aquelas vozes, ainda que de modo indireto.
Naquele mesmo dia, por volta das duas horas da tarde, tomava a direção de um setor vizinho àquele onde eu era lotado, quando flagrei Teobaldo chamando a atenção de Cléber: “Você tá muito lento, rapaz! Fica aí se amarrando pra fazer as coisas. Desse jeito não dá!” O rapaz, que ouvira toda a fala cabisbaixo, ao final levantou a cabeça e respondeu: “O senhor quer que eu seja dois? Como eu vou limpar um banheiro aqui e outro lá em cima nesse ritmo que o senhor está me pedindo? Só se eu fosse The Flash (numa alusão ao famoso super-herói norte-americano dos quadrinhos)!” Todos ao redor – o local contava com umas seis pessoas, naquele momento – olharam surpresos para ele, e eu não fui uma exceção.
Após a fala, os dois riram da situação e Teobaldo colocou sua mão direita sobre os ombros do seu subordinado, emendando: “Rapaz, você é como um filho pra mim, mas você sabe como é, né?! Se eles me apertam de lá, não vou comer bronca sozinho, por isso vocês devem me ajudar pra eu poder ajudar vocês, entendeu?!” E entraram no elevador, Teobaldo ainda com a mão direita sobre os ombros de Cléber, este carregando balde d´água, rodo e produtos de higiene com as duas mãos.
Entrei no setor de destino e, por coincidência, Matilda estava lá resolvendo uma situação referente ao setor do qual era coordenadora. Também estavam no local Flora e Lúcia, essas esfregando suas flanelas nas mesas de maneira meticulosa, enquanto Matilda cobrava dos funcionários técnicos que trabalhavam na sala mais cuidado com a organização dos relatórios de sua responsabilidade. Eles ouviam a cobrança áspera quietos, alguns quase indiferentes, enquanto as trabalhadoras da limpeza fingiam-se de surdas e tocavam suas tarefas rotineiras. Resolvi o que tinha para resolver e deixei o recinto em direção ao meu setor.
Por fim, por volta das quinze e quarenta da tarde daquele dia tão interessante até ali, já próximo ao fim do expediente, precisei me dirigir, ao lado do meu coordenador, Gualberto*, à direção da unidade para tratar de um problema técnico do meu setor que cabia somente ao diretor, o Dr. Gervaldo Uzuriaga*, resolver. Ao adentra sua sala, deparamo-nos com uma conversa um pouco acalorada entre ele e Matilda. O diretor, com uma voz firme e em volume um pouco elevado, dizia: “Eu já lhe disse, eu já lhe disse mais de uma vez que a gente aperta esse pessoal, mas precisa saber a hora de afrouxar um pouco as rédeas, pois eles são estáveis e, numa hipótese de muita pressão, podem usar mil e um artifícios para emperrar o trabalho, não foi?!” Ela simplesmente disse, em tom de voz similar ao de uma garotinha de dez anos de idade quando com medo: “Sim, eu sei disse, Dr. Gervaldo, mas eu não tive alternativa, o senhor sabe como é, né?!” Então, ambos suspenderam a conversa de súbito e voltaram os olhos para meu chefe e eu.
Ao obtermos uma posição do diretor, eu e meu coordenador voltamos ao nosso setor. O caminho entre a sala da direção e o setor no qual eu trabalhava não era longo, muito pelo contrário, eu caminhava uns quinze metros, descia um lance de escadas e já dava de frente com a porta do meu local de trabalho. Mas nesse final de expediente pareceu mais longo, pois no trajeto, após aquele dia com vários momentos que me levaram a reflexões existencialistas, tomara a minha mente a imagem advinda de uma leitura que fizera do maior clássico de um dos meus escritores favoritos, o tcheco Milan Kundera, seu formidável A Insustentável Leveza do Ser. Li essa maravilha quando tinha vinte anos de idade, e eu posso dizer, de maneira segura, que minha percepção literária se divide em antes e depois dela.
Um trecho do livro que me marcou bastante e que operou como a síntese perfeita daquele longo dia de labuta, muitos anos após o deguste da obra, é aquele no qual Kundera descreve a situação do filho de Stalin, descrito pelo escritor como o homem mais poderoso do Universo, que, após ter se comportado de maneira “não revolucionária” aos olhos dos burocratas soviéticos, tivera como castigo, a mando do próprio pai, o mesmo destino de milhares de soviéticos, naqueles anos totalitários, isto é, os trabalhos forçados em minas de sal da Sibéria. Como se comportara mal, em determinado momento de sua estadia forçada na Sibéria, o filho do ditador soviético tivera como punição o trabalho de limpeza de fossas. Kundera , então, reflete sobre este episódio real no sentido de mostrar como a vida é absurda, de mostrar como ela constitui um sistema de convenções que nos faz saltar da grandeza à insignificância sem muita cerimônia, posto que o filho daquele que era o homem mais poderoso do mundo, naquele momento, encontrava-se ali reduzido a um limpador de excrementos de soldados e de outros “desviantes” como ele.
E essa convenção chamada vida em sociedade continuou e continua garantindo que os trabalhadores da limpeza daquela unidade e de todas as outras permaneçam a baixar a cabeça e respeitar de maneira quase que absoluta àqueles mesmos senhores e senhoras dos quais eles sentem o fedor de suas fezes, assim como a limpar a sujeira deixada por cada um deles nos toaletes da vida com a mesma disciplina, dia após dia. Não tenho dúvidas de que Kundera e aquela conversa entre operários da mais baixa escala laboral, segundo a classificação de status dessa civilização de hipocrisia excrementícia, confirmam a pertinência de Albert Camus e sua filosofia do absurdo.
*Por questões ético-profissionais e de preservação da privacidade dos envolvidos nos acontecimentos narrados, os nomes utilizados são fictícios.
Fonte da imagem: https://www.posfacio.com.br/2011/07/30/a-lentidao-milan-kundera/
Referência
KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1999.