Por Gabriel Brito *
Meu argumento é que no livro ora comentado, Descentrando a Linguagem: Deleuze, Latour e a Terceira Revolução Copernicana na Sociologia, Thiago Pinho produziu uma versão de Latour bastante coerente com o que o próprio Latour constituiu em sua trajetória, ao menos até os anos 2000 e início de 2010. No entanto, tal como não é incomum dizer que o antípoda de Latour, Durkheim, dizia para se fazer Sociologia de um modo, porém, na prática, fazia de outro, o mesmo parece ocorrer com Latour. O sociólogo Francis Chateuraynaud, que recentemente esteve em Recife, na UFPE (outubro de 2019), na mesma ocasião em que tive o prazer de conhecer Pinho, disse certa vez que Latour estaria produzindo, inspirado no modelo de “mundos” ou “cidades” (les cités), de Boltanki e Thévenot, Uma cidade ambiental como modelo de justificação.
Pinho apresenta um Latour vitalista, seguidor de Espinosa, assim como de Deleuze. Latour e Deleuze (ou Deleuze e Latour) estariam no centro de uma 3ª revolução copernicana, uma mudança de modos de pensar e de se fazer, neste caso, Sociologia. Em tal caso, Latour aparece como aquele que foge ao transcendentalismo, da metafísica, produzindo, diríamos com Pinho – à guisa de Deleuze -, “corpos sem órgãos” e “signos quebrados”. Com o próprio Latour poderíamos lembrar dos “grampos”, como panoramas, localizadores e, ainda, os conectores utilizados como “ferramentas” para pesquisas baseadas em sua sociologia associativa. Termos dessubstancializados que possibilitam com que um sociólogo de associações desenhe em um mapa a forma de uma estrela, ao ligar pontos de fluxos – convergências, descontinuidades, “cortes de rede” – que assumem formas variadas. Também poderíamos pensar em conceitos como inscrições literárias, móveis imutáveis, caixas pretas, híbridos, actantes etc. Termos esses que sempre estão “vazios”, pois não captam o que transborda do real, essa “mais valia” ou o inconsciente não em sentido psicanalítico, mas apenas formal (como nos lembra Pinho, comentando Deleuze).
Seria Latour tão “aberto” aos “modos de existência” dos outros e, por conseguinte, à própria flexibilidade ontológica? Diríamos que sim, caso falemos como porta-vozes que somos, aqui, de Pinho, já que falamos como se ele tivesse falado. Mas perguntemos para o próprio Latour se ele diria o mesmo:
- Caro Bruno Latour, o senhor defendeu ao longo de sua obra – principalmente, para o presente contexto, na Sociologia Associativa – uma abertura para os diferentes “mundos” e “modos de ser”. Mas em uma publicação traduzida pela editora da universidade em que nosso comentador, Thiago de Araújo Pinho, atualmente faz seu doutoramento, a UFBA, você diz que para “reagregar o social” seriam necessários dois movimentos: o primeiro leva ao alistamento de aliados – arregimentação - , o segundo movimento levaria à unificação – momento mais “político”. Se estou certo, então isso não significaria o mesmo que uma delimitação ontológica?
- “A sensação de crise que percebo estar no centro das ciências sociais poderia agora ser expressa da seguinte maneira: quando ampliamos o rol de entidades, as novas associações não formam um conjunto viável. E aqui a política entra novamente em cena, caso a definamos como a intuição de que associações não bastam, de que elas precisam também ser compostas para delinear um mundo comum. Para bem ou para mal, a sociologia, contrariamente à sua irmã [a] antropologia, não se contenta nunca com a pluralidade de metafísicas; necessita igualmente enfrentar a questão ontológica da unidade do mundo comum. [...] É, pois, absolutamente verdadeiro afirmar que nenhuma sociologia se limita a "descrever" associações, simplesmente gozando o espetáculo da vasta multiplicidade de novos vínculos [...] (LATOUR, 2012, p. 367. Itálicos de Latour; negritos meus).
“Mundo comum” é só outro nome para o velho debate helênico: o bem comum, Latour! – diria um pesquisador brasileiro, João Paulo Bachur. Em segundo lugar, arregimentar e depois unificar significa fazer ciência e pesquisa e, depois levar as evidências e provas para um regime político dado. O que, necessariamente, depende de duas coisas básicas: de instituições científicas existentes e de instituições políticas cujo sistema seja minimamente democrático ao ponto de permitir um bem comum viável para que as práticas científicas defendidas por Latour possam se desenvolver. O que nos faz perguntar se no cenário político brasileiro atual, tal bem comum poderia se desenvolver.
- Latour, você concorda? Acaso somente as práticas que você defende poderiam ser produzidas a partir das ciências sociais?
- “Desta vez, porém, [as ciências sociais] não o fará [ão] dentro dos panoramas que apresentei, mas lá fora e para sempre. [...] Outra tarefa precisa ser executada, a fim de que ela mereça o título de ‘uma ciência da vida em comum’[...] (368).
- Precisamos das ciências sociais e não de outras práticas, como a religião, por exemplo, por que, Latour?
- “[...] Por causa do número de novos candidatos e por causa dos estreitos limites dos coletores imaginados para tornar a convivência possível.” (368).
Ora, há quem diga que o budismo daria conta do recado. Mas tudo bem. Retomando a questão do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, Latour realmente pode ser lido como Pinho sugere? Talvez sim, talvez não. Concordo, é uma resposta evasiva. Entretanto, abrir o mundo para diferentes ontologias e, ao mesmo tempo, desejar produzir um mundo em comum parece ser apenas outra maneira de recolocar o – por que não? – problema do bem comum. Acaso não seria justamente esse “bem comum” mais um – usemos os termos de Pinho – transcendentalismo, já que a ideia de bem, em si mesma, pode ser lida como pertencente a uma ontologia, já que nada escapa disso? Os próprios termos - ética e moral - não possuem, ao menos etimologicamente, raízes latinas e gregas? O que os colocaria já dentro do que poderíamos chamar, com Jacques Derrida, de um arquivo do conceito e, portanto, de uma ontologia?
Finalmente, quer queira quer não, parece que a exposição de Pinho sobre, aqui, Latour, é fiel ao sociólogo (filósofo e antropólogo), mas talvez seja mais fiel do que o próprio Latour tem sido para consigo mesmo. O que, de modo algum, invalida o excelente trabalho de Pinho. Muito pelo contrário: é precisamente nessa “fidelidade” ao trabalho de Latour (e não somente) que permitiu com que Pinho presenteie seu leitor ou leitora com a contextualização de Latour dentro de uma corrente pré-kantiana, a espinosista; ao mesmo tempo em que produz um novo contexto, a saber, um agenciamento que promete, como a filosofia de Deleuze, ou a ética de Espinosa (ver Deleuze, Espinosa: uma filosofia da prática), abrir o mundo e “o” pensamento para uma potência de liberdade e não encerramento de produções do ser (ontologias) que pode ser exemplificada pelo Zaratustra de Nietzsche, porém, sem a necessidade do ascetismo de outrora...
*Gabriel Brito – Programa de Pós-Graduação em Antropologia (UFPE).