
Tenho lido constantemente sobre ontologia, seja na “virada ontológica” (Antropologia), seja “por fora”, por prazer (na Filosofia: contrastando, por exemplo, a ontologia de Lukács com a de Heidegger). Neste penúltimo mês de 2019, fui presenteado com o livro “Investigação sobre os modos de existência: uma antropologia dos modernos” (LATOUR, 2019). Gostaria então de propor, me inspirando nas postagens do meu xará, o Sociofellow Gabriel Peters de “Bourdieu em pílulas”, um “Latour em pílulas”. Todavia, preciso manter um fio condutor que me permita dialogar com não cientistas sociais também, pois o Soteroprosa tem como virtude essa prática.
Pois bem, com a frase “É racional o que segue o fio das diferentes razões (LATOUR, 2019: 65)”, nosso bom velhinho, Latour (1947-), com seus 72 anos, intenciona com maior tempero reoxigenar o chavão “racional” de “Nós, os modernos”, já que em sua maturidade de meia-idade, ele fora tão arrogante e destemperado ao lidar com, novamente, “nós, jamais [...] modernos” (LATOUR, 1994 [1991]). Latour pretende aperfeiçoar a teoria ator-rede, (ou “do ator-rede” – como preferem as diversas traduções brasileira), pois, de fato, ao estudar redes de todo tipo, sem distinções, ele próprio agora reconhece que evitávamos propor ou alternar algumas redes ao invés de outras.
Um exemplo dessa prática pode ser lida num trabalho pessoal. Investiguei como cientistas sociais e agrônomos/as da UFRPE lidavam/percebiam agrotóxicos. Todavia, o máximo que pude fazer foi criar um “parlamento das coisas” no qual busquei “comunicar” diferentes pesquisas que continuam produzindo informações sobre essa controvérsia. Apesar de isso me satisfazer do ponto de vista de posicionamento, afinal, o ceticismo grego é um fonte límpida e ao mesmo tempo entorpecente, bastava pra mim – em minha fonte privilegiada – apenas catalogar a controvérsia.
Mas atualmente Latour trouxe um complemento (o qual se limita no alcance a esse post/pílula – Capítulo 2 do livro ora “comentado”): a noção de que valores precisam ser catalogados em associação às redes. “Calouro” eu, não percebi isso na conclusão de minha graduação, levei então adiante a teoria ator-rede sem pensar em valores, mas apenas em - uma sociologia dos - interesses. O único entrave que apareceu foi prático, empírico: ao negar a abordagem sociológica clássica durante o mestrado, percebi que era uma atitude contraproducente diante do campo, já que cientistas sociais e o bom-senso comum sempre cultivaram a noção de valores “sociais”. Ora, isso me fez agora tentar compreender, justamente, como cientistas sociais contribuíram (dentro de sua epistemologia) com a mitigação aos impactos de vírus Zika em Recife-PE.
Para ilustrar a relação entre valores, redes e interesses, no entanto, é preciso, por ora, outra ilustração. Esta sim que dialogue com nossas leitoras e leitores para além deste aparente intimismo pseudo-autocrítico. Por que nos separamos em racionais/irracionais ou mononaturalistas/iluministas e contra-racionais e relativistas? No primeiro caso, o pensamento clássico dizia que nós, “modernos”, “Ocidente” - “Brasil-colonizado com síndrome de viralata” no nosso caso – somos racionais, já os povos indígenas, os cotistas, as feministas, ou esses “ideólogos” são todos e todas “irracionais”, emotivos, herdeiros do atraso e subdesenvolvimento.
O segundo caso dizia que contra esses advogados da Razão, nós, a esquerda, poderíamos desvelar suas escondidas artimanhas e interesses para demonstrar como seríamos tão bárbaros quanto qualquer outra “cultura”: acaso o bolsonarismo não é um fascismo? A série da Netflix (ver post anterior) “Nós somos a onda” não denuncia o assassínio, entre outras coisas, via mercado de armas legalizado? Okja, também da Netflix não é um filme que serve como ótimo exemplo do nosso mundo carnívoro e, como prefere o público vegano, “necrófilo”? Então qualquer lugar pode ser melhor ou pior, não cabe à razão o privilégio de superioridade.
Ambos os casos, em conclusão, nos levam a uma encruzilhada: ficamos entre ações e valores, ou redes [RES] e prerrogativas [PRE] distintas e temos de escolher entre elas. Mais ainda, o racional aparece como – se fomos suficientemente críticos – insuficientemente satisfatório. Então caímos rapidamente noutro pólo: de Black Mirror a Stanley Kubrick ou Isaac Asimov, na denúncia do pós-humano, do Eu Robô, da Máquina, do Exterminador, do Cálculo, justamente, racional como pólo “neutro”, não-humano, sem sentimentos, sem valores. Seguindo, agora, os passos de Investigação sobre os modos de existência, será que poderíamos nos perguntar: quando foi que a razão esqueceu sua própria razão de ser? Ou melhor, por que acreditamos que o que é racional não é, exatamente, uma ação decorrente de valores? O grande Agente Smith, em Matrix: revolutions não vocifera contra o “irracional” Neo, alegando que tudo que vive chega a um fim e, por isso pergunta: “por que Neo não desistia logo?”; ao passo que Neo o respondia: “Porque eu escolhi...” – eis a escolha como sintoma do que foi recalcado, escondido diante da chamada escolha racional.
Fonte da imagem:
https://www.google.com/urlsa=i&url=http%3A%2F%2Fthematrix101.com%2Frevolutions%2Fmeaning.php&psig=AOvVaw1H8GK7W8QTmV71OMX2aA8Z&ust=1574801841481000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCKis9LOghuYCFQAAAAAdAAAAABAE