– Sabe de onde vem essa data: 24/12/2019? – Perguntei a minha pequena Lóri, apontando com o indicador o calendário mostrado na tela de meu notebook.
– Não. – respondeu.
Esta pergunta nos permitiu conversar sobre dois calendários, com ênfase no “nosso”. O outro calendário era o chinês. Todavia, fiquemos com o “nosso”. Ele está “amarrado” ao destino do judaico-cristianismo – nosso calendário está associado a um livro (A bíblia) e a, precisamente, um corpo híbrido: metade humano, metade divino – o corpo de Cristo. Este corpo é híbrido também no espaço: nasceu em Jerusalém, ascendeu ao Céu, como um corpo de Céu e Terra (Giacomo Marramao) [1]. Em outras palavras, disse para Lóri: “nosso calendário conta 2019 anos depois do nascimento deste bebê”. Antecipando a pergunta seguinte: “mas come ele chegou aqui”, eu lhe disse: “por volta do ano de 1500 depois do nascimento desta criança, pessoas que viviam aqui” – apontei um mapa exibido na tela do meu notebook – “viajaram de barco para aqui” – apontei para nosso continente. Continuei: “essas pessoas guerrearam com as pessoas que viviam aqui – apontei de novo – e, como no jogo Clash of clãs que jogávamos, eles venceram e dominaram essas terras. Foi assim que ligaram o calendário de um povo baseado no nascimento de um bebê de Jerusalém ao nosso país atual e, portanto, é isso que nosso computador está mostrando em sua tela.
Agora leiamos uma mensagem que recebi de uma parente: “QUE NATAL É ESSE? Não há festa mais desfocada que o Natal. Transformou-se no corre corre do consumismo. Poucas pessoas refletem no significado da vinda de Jesus ao mundo. Porque ele veio. Como ele veio. Como ele viveu entre nós. O que ele fez por nós. Nossa geração secularizada empurrou Jesus para a lateral do caminho e colocou-se a si mesma no centro. Queremos casas enfeitadas. Ruas coloridas. Lojas cheias de brilho. Árvores com muitas lâmpadas. Muitos presentes. Mesas fartas. Pouca reflexão. Papai Noel tocando o sino e vendendo bons presentes para quem pode pagar. Precisamos “recristianizar” o Natal. Precisamos devolvê-lo a seu verdadeiro dono. Precisamos celebrar Jesus, o Filho de Deus, que sendo rico se fez pobre e veio nascer numa manjedoura, crescer numa carpintaria, morrer numa cruz e ressuscitar dentre os mortos para a nossa redenção”. Texto de Hernades Dias Lopes.
Vemos acima uma junção entre os 2019 anos do calendário judaico-cristão (gregoriano) com a data de amanhã (hoje, 24, sua véspera). Vemos o senhor Lopes criticando o “consumismo” e celebrando o “cristianismo”. Vemos mais uma hibridez: entre o profano e o sagrado, entre o Céu e a Terra. De um lado, o mau valor: capitalismo; do outro, o bom valor, o cristianismo. O calendário, assim, nos parece um meio de enquadrar a data em duas formas de ritual: um religioso e outro secular. Todavia, Lopes deseja recristianizar um mundo descristianizado. Vemos uma pessoa agindo, optando por um script [2] – religioso – em detrimento de outro – secular. Cristo então volta ao mundo, presente e atual, como uma presença entre, em nós, contanto que abdiquemos do consumismo secular em prol da celebração do ritual daquele povo e tradição vindos de Jerusalém.
A antropologia do tempo nos permite observar duas experiências distintas: uma secular, digamos materialista (no bom e no mal sentido) e outra religiosa, digamos transcendentalista (no bom e no mal sentido). Mais ainda: podemos observar que os dois enquadramentos, ou scripts, nos colocam diante de uma decisão (nem sempre consciente, portanto nem sempre decisão) de fazer um tempo como deve ser feito. Fazê-lo, portanto, faz fazer o Natal (com N maiúsculo); ou faz fazer o natal (secular, com n minúsculo). Uma decisão simples, mas que nos coloca diante de uma realidade sobre ser no mundo (ontologia) religiosamente e outra secularmente.
Quando pensamos então no tempo (N/natal), na experiência (secular/religiosa), podemos identificar como o substantivo religião se torna um advérbio: religiosamente (assim como secular e secularmente). Quando visto desse modo, podemos observar que de uma crise religiosa, imaginada, podemos refazer nossa experiência de maneira religiosa, sem perder mais nenhum minuto ou data desde 2019 anos atrás até o momento presente.
Bem sabemos que o nosso calendário segue uma cronologia (kronos), mas pode ser visto como se fazendo como se deseja, como se a cada instante, o tempo fosse não linear (e escatológico), mas circunstancial e decisório (em grego, kairós). Ao perceber essa diferença em nos perguntar “o que é o N/natal” deveríamos nos perguntar “como faremos o N/natal”. O resultado é alternar entre uma experiência religiosa de viver o instante (N/natal) e outra secular – e nem por isso necessariamente “consumista”.
Por fim, é preciso se ter em mente que os scripts que nos enquadram não nos mutilam, impedindo-nos de agir (não neste contexto). Estes scripts com certeza estão entre nós (nas ruas, nas lojas, no interior das residências, nos abraços e confraternizações, nas receitas de rabanada ensinadas em programas de televisão, nos presentes trocados, nas doações de presentes para crianças carentes...). O que parece problemático é esse monopólio do que deve ser o natal, como as pessoas devem viver, como as pessoas devem celebrar, como as pessoas devem consumir, ao quê as pessoas devem se opor.
Feliz natal, para consumistas, para liberais, para cristãos, evangélicos, umbandistas, xamanistas, comunistas, anarquistas, bolsonoristas/lulistas ou satanistas e wiccas. Como tenho dito, o tempo é uma forma de resistência: só aceite os scripts que lhe permitam uma metamorfose consciente e que te permita ser... ser o que quiser. O resto é balela de secularistas religiosos.
Imagem: WhatsApp, fonte desconhecida.
[1] Alusão ao livro de Giacomo Marramao (1997): Céu e Terra: genealogia da secularização
[2] Script é entendido por Bruno Latour como uma modalidade de existência típica de Organizações e Instituições. Sua função é enquadrar as ações e permitir a mobilização de práticas em escalas variáveis, como, por exemplo: a economia mundial e esse Espírito do Capitalismo substitutivo de Deus segundo a crítica religiosa ou religioso-secular. Ver Latour, Bruno (2019). Investigação sobre os modos de Existência: uma antropologia dos Modernos..