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A MENTIRA QUE SEMPRE TE CONTAM SOBRE O ANO NOVO... E VOCÊ ACREDITA!!!



Na filosofia ou nas ciências sociais é comum grandes interpretações, grandes mergulhos no interior da linguagem, um tipo de movimento onde tudo ganha uma costura atraente, sólida, afinal, tudo precisa ser encaixado, nada pode ser aleatório ou vazio, tornando o silêncio um inimigo difícil de digerir. A palavra, seja escrita ou oral, precisa preencher o vácuo, o caos, não importa o que aconteça, ao fazer da linguagem uma ferramenta de pura conveniência. Segundo o que me ensinaram, ao menos lá na faculdade de Ciências Sociais da UFBA, ser inteligente nada mais é do que enquadrar o universo inteiro em nossa linguagem, como se tudo estivesse sob nosso controle, principalmente quando termos como ESTRUTURA e SISTEMA aparecem no palco. O mundo acaba se tornando uma extensão de mim mesmo, das minhas ideias, da minha linguagem, quase como um traço de narcisismo estranho, embora insistente. Nada transborda, nada silencia, já que tudo tem um sentido claro e preciso, ao menos para mim, sujeito crítico e especial. Essa atitude pretensiosa, por incrível que pareça, não fica reservada apenas aos corredores universitários, mas faz parte também do dia a dia, como é possível perceber na conversa do padeiro, da enfermeira ou da baiana de acarajé.


Mais um ano se passou, o que parece óbvio até aqui, a não ser se alguém ficou preso em alguma caverna sem acesso a nada. Não importa sua religião, nem mesmo se você é ateu, quando se trata da chegada do ano novo todos se preparam, quase como se fosse uma maratona obrigatória, um ponto de partida posicionado todo 31 de dezembro. Não importa se a estratégia é uma cor específica de roupa, um gesto ou uma palavra na hora certa, o importante é criar fórmulas de controle, táticas que reduzam a ansiedade do ano que vem por aí. O importante não é apenas acreditar que o universo lá fora tem sentido, mas partir da ideia de que esse sentido é manipulável por nós, sendo algo flexível, ao menos quando os movimentos certos são aplicados. Talvez uma calcinha vermelha para atrair o amor da sua vida ou uma roupa branca para invocar aquela paz desejada. Na ceia, não esqueça da ervilha e sempre evite aves que ciscam para trás. Esses são apenas alguns exemplos de milhares de rituais que fazem parte da nossa virada de ano.


Se a vida é um jogo, com suas metas e personagens, precisamos obviamente do controle, precisamos daquela ferramenta que conduz o destino desse mesmo jogo. Em outras palavras, precisamos estar no comando, embora todo ano a mesma verdade indesejável apareça no horizonte, toda aquela certeza inconveniente: o mundo sempre escorre por nossos dedos, como se fosse areia, ou melhor, como água. Talvez seja a hora de encarar o ano novo de uma nova forma, de um jeito menos cliché, deixando de lado a mania insistente de controle. Esse não seria justamente o conselho de um psicanalista a alguém com transtorno de ansiedade? Ao invés de inventar novas formas de controle, formas temporárias e desesperadas, talvez o grande desafio seja apenas acolher a condição básica de qualquer um, aquele traço existencial que todos temos que encarar: a CONTINGÊNCIA.


Na experiência cotidiana, aquela do dia a dia, sabemos que muita coisa sai do controle, ou seja, algo sempre escapa, escorre, ainda que ninguém queira admitir. Sabemos bem que existem milhões de circunstâncias em um simples dia afetando nosso corpo e desencadeando uma esteira de reações, envolvendo pensamentos ou práticas. Na verdade, não apenas isso... as milhões de circunstâncias no dia são influenciadas pelas bilhões que aconteceram no passado, criando uma rede bem curiosa de experiências. O passado e o presente quase desaparecem, fazendo parte de um mesmo fluxo de vida, tudo misturado em um grande caldeirão fenomenológico. Apesar desse campo rico de experiências fazer parte da vida de qualquer um, todo o final de ano esquecemos esse detalhe, tentando restabelecer a ordem perdida, o controle que foi tirado de nossas mãos. O curioso é que nosso corpo sabe a verdade, mas nossa linguagem/ego tenta nos iludir. Nosso corpo entende o quanto o mundo lá fora é complexo e transbordante, mas nossa linguagem/ego foi feita para dizer o contrário, numa tentativa desesperada de preservar algum tipo de ficção. O fim de ano marca o nosso ultimo suspiro, nossa ultima tentativa de restabelecer o controle, sendo os rituais exemplos perfeitos disso. A astrologia, prática comum nos finais de ano, é também um exemplo interessante, no fundo mais uma estratégia de controle como qualquer outra.


O transtorno obsessivo compulsivo (TOC), ou até mesmo a síndrome do pânico, seriam também formas de controle, modos criativos de prevenir o caos e a instabilidade, não se distanciando muito daquilo que acontece com nossos rituais de fim de ano. A diferença é apenas numérica, já que esse último é uma loucura institucionalizada, inscrita numa linguagem em comum, compartilhada. No fundo, seja alguém com TOC, ou alguém usando uma calcinha vermelha, o que nós queremos é assumir as rédeas da vida, de suas variáveis, ou, pelo menos, queremos ter a falsa impressão de controle, segurança, ainda que no fundo todo mundo saiba o quanto a realidade transborda e escapa. No fundo, somos filhos e filhas do capitalismo, somos criaturas liberais acreditando em nossa liberdade e na crença de que nosso destino está em nossas mãos. Talvez falte em nossa época um pouco de tragédia grega, acompanhada de alguns traços de humildade, na crença de um mundo que nos ultrapassa e que precisamos aprender a ouvir, sentir e aprender. Deixem o controle de lado e talvez, apenas talvez, o jogo se torne interessante e cheio de um sentido próprio.


REFERÊNCIAS DA IMAGEM:


https://www.belasmensagens.com.br/anonovo


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